Pensadora nasceu na França, mas fez ‘carreira’ na Índia; ela desprezava todas as formas de igualitarismo e defendia raça ariana.
ROTANEWS176 E BBC BRASIL.COM 05/11/2017 10:55
Ao navegar pelo site oficial do partido ultranacionalista grego Aurora Dourada para uma reportagem, em 2012, me deparei com a foto de uma mulher envolvida em um sári de seda azul. Ela olhava para um busto de Adolf Hitler, diante de um intenso pôr-do-sol.
Reprodução/Rota-176 Savitri Devi Foto: BBCBrasil.com
Mas o que aquela mulher com aparência indiana fazia na página de um partido abertamente racista que quer expulsar todos os estrangeiros da Grécia?
Aquela informação ficou guardada na minha memória. Até que a crescente onda de políticas de extrema direita, que varreu a Europa e os Estados Unidos, trouxe o nome de Savitri Devi à tona novamente.
Hoje não é difícil encontrar referências em fóruns neonazistas a seus livros. Entre os mais mencionados, estão O raio e o sol , no qual a autora argumenta que Hitler era a reencarnação do deus hindu Vishnu, e Ouro na Fornalha , que incita os verdadeiros fiéis a acreditar no ressurgimento do nacional-socialismo.
O portal de notícias americano Counter-Currents, de extrema direita, também tem um extenso arquivo online sobre sua vida e obra.
As ideias de Savitri também estão chegando a um público mais amplo, por meio de líderes do movimento alt-right, como Richard Spencer e Steve Bannon, fundador do Breitbart News, site de notícias de extrema direita, e que até recentemente era o estrategista-chefe do presidente Donald Trump.
Tanto Spencer quanto Bannon, e em geral toda a alt-right, adotaram sua visão da história, de que haveria uma batalha cíclica entre a luz e as trevas, teoria compartilhada por Savitri e outros místicos fascistas do século 20.
Mas quem era Savitri Devi – e por que suas ideias estão ressurgindo agora?
Reprodução/Rota-176 Savitri Devi, em 1980 Foto: BBCBrasil.com
Atraída por Hitler
Apesar do sári e do nome, Savitri era europeia, filha de mãe inglesa e pai grego-italiano. Nasceu na cidade francesa de Lyon, em 1905, e foi batizada com o nome de Maximiani Portas.
Desde a infância, desprezava todas as formas de igualitarismo. “Uma menina bonita não pode ser igual a uma menina feia”, disse ela a um interlocutor de Ernst Zündel, conhecido por negar o Holocausto, em 1978.
Conquistada pelo nacionalismo grego, chegou a Atenas em 1923, juntamente com milhares de refugiados deslocados pela campanha militar desastrosa da Grécia na Ásia Menor no fim da Primeira Guerra Mundial.
Savitri culpava os aliados ocidentais pela humilhação da Grécia e pelo que considerava “punições injustas” impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes (1919), que encerrou oficialmente a guerra.
Em sua opinião, tanto a Grécia quanto a Alemanha eram vítimas, às quais se havia negado a legítima aspiração de unir todo seu povo em um único território.
Isso, combinado com um forte antissemitismo que dizia ter aprendido na Bíblia, fizeram com que desde muito cedo fosse identificada como uma nacional socialista.
Hitler era líder da Alemanha, mas, para Savitri, a ânsia nazista de erradicar os judeus da Europa e devolver à “raça ariana” sua legítima posição de poder também faziam dele seu “Führer” – palavra que significa líder em alemão.
Como os pensadores antissemitas do século 18, Savitri culpava os judeus-cristãos por terem acabado com a glória da Grécia e a antiga utopia mítica dos arianos.
Em 1930, ela viajou para a Índia (à época ainda colônia do Reino Unido), em busca de uma versão viva do passado pagão da Europa. Estava convencida de que o sistema de castas mantinha a pureza da sociedade local – uma ideia partilhada por David Duke, ex-líder da Ku Klux Klan, que também visitou Índia na década de 1970.
Nazismo e Hinduísmo
Reprodução/Rota-176 Adolf Hitler Foto: BBCBrasil.com
Uma mulher europeia viajando sozinha era tão atípico que as autoridades coloniais passaram a monitorá-la. Mas Savitri não mostrou interesse pelos britânicos na Índia até a Segunda Guerra Mundial, quando compartilhou informações sobre eles com o Japão.
Por outro lado, aprendeu várias línguas locais e casou-se um brâmane (casta sacerdotal hindu) – que ela considerava um ariano. Na Índia, escreveu uma elaborada síntese de mitos hindus e nazismo, na qual Hitler era apresentado como “um homem contra o tempo”, destinado a acabar com o Kali Yuga (período que aparece nas escrituras hindu associado à Idade das Trevas) e a começar uma nova era de supremacia ariana.
Em Calcutá, na década de 1930, Savitri trabalhou para a Missão Hindu – atualmente, um templo de bairro tranquilo, mas, naquela época, um centro de atividade missionária e nacionalismo hindu.
A politização das comunidades religiosas na Índia durante o domínio britânico ajudou a fomentar o movimento Hindutva, segundo o qual os hindus eram os verdadeiros herdeiros dos arianos e a Índia uma nação essencialmente hindu.
Savitri ofereceu seus serviços ao diretor da Missão, Swami Satyananda, que, assim como muitos indianos antes da independência, compartilhava sua admiração por Hitler, mesclando a propaganda nazista com o discurso nacionalista hindu.
Naquela ocasião, ela se dedicou a viajar por todo país realizando palestras em hindi e bengali. Pontuando suas lições sobre os valores arianos com trechos de Mein Kampf (Minha luta, livro escrito por Hitler).
Mas em 1945, arrasada pela queda do Terceiro Reich, Savitri retornou à Europa para trabalhar na reconstrução da Alemanha nazista. Sua chegada à Inglaterra é descrita em seu livro “Bigodes longos e a Deusa de duas pernas”, uma fábula infantil cuja heroína é uma nazista amante de gatos, como ela própria.
A heroína, Heliodora, “não tinha ‘sentimentos humanos’ no sentido ordinário da expressão”, escreveu. “Desde sua infância, ela se chocava com o comportamento dos homens em relação aos animais… mas não tinha a qualquer compaixão por pessoas sofrendo por serem judias”.
Reprodução/Rota-176 Robert Spencer em Charlottesville Foto: BBCBrasil.com
Camaradas nazistas
Savitri sempre deixou claro que preferia os animais aos humanos e, tal como Hitler, era vegetariana.
Em 1948, conseguiu entrar na Alemanha ocupada, onde distribuiu milhares de panfletos nos quais se lia: “Um dia nos reergueremos e voltaremos a triunfar! Tenham esperança! Heil Hitler!”.
Anos depois, Savitri declararia que ficou feliz em ser detida por autoridades de ocupação britânicas, já que a prisão possibilitou a ela se cercar de seus “camaradas” nazistas.
Durante a passagem pela prisão, reduzida graças à intervenção de seu marido junto ao governo indiano, ela se aproximou de uma ex-guarda do campo de concentração de Bergen-Belsen, condenada por crimes de guerra. “Uma mulher linda, uma ruiva mais ou menos da minha idade”, descreveu.
Reprodução/Rota-176 Brâmanes Foto: BBCBrasil.com
A sexualidade de Savitri sempre foi objeto de especulações. Seu casamento com Asit Mukherjee era supostamente celibatário, uma vez que não pertenciam à mesma casta.
Já a nazista Françoise Dior, sobrinha do famoso estilista, assegura ter sido sua amante.
Morte e ressurreição
Perto do fim da vida, Savitri Devi voltou à Índia, onde parecia se sentir em casa. No país, ela se dedicou a cuidar dos gatos de sua vizinhança, em Deli, alimentando os felinos todas as manhãs com pão e leite. Saía sempre com joias de ouro, tradicionalmente usadas por mulheres hindus casadas.
Savitri morreu, no entanto, na Inglaterra, na casa de uma amiga, em 1982. Dizem que suas cinzas foram enterradas, com honrarias fascistas, junto às do líder nazista americano George Lincoln Rockwell.
Reprodução/Rota-176 Françoise Dior fazendo a saudação depois de seu matrimônio em Coventry, na Inglaterra, em 1963 Foto: BBCBrasil.com
E, embora na Índia seu nome tenha sido esquecido quase por completo, o nacionalismo hindu que ela abraçou e ajudou a promover está em alta, para preocupação de seu sobrinho, o jornalista veterano de esquerda Sumanta Banerjee.
“Em seu livro Uma advertência aos hindus , publicado em 1939, ela recomendava cultivar ‘um espírito de resistência organizada’. O alvo dessa resistência eram os muçulmanos, que Savitri via como uma ameaça aos hindus. E esse mesmo temor está vivo hoje”, explica Banerjee.
Além disso, a Hindutva também é a ideologia oficial do Bharatiya Janata, partido do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que defende que muçulmanos e secularistas enfraqueceram a nação hindu.
Os porta-vozes do partido de Modi condenam a violência, mas os protestos que causaram a destruição da mesquita Babri, em Ayodhya, em 1992, e a atual onda de ataques, às vezes fatais, contra os muçulmanos e opositores contam uma história diferente.
Reprodução/Rota-176 Savitri Devi Foto: BBCBrasil.com
Já nos Estados Unidos, o racismo, o anticomunismo e a convicção dos cristãos fundamentalistas de que o apocalipse se aproxima também prepararam o terreno para o flerte da extrema direita com suas profecias ocultistas, que misturam hinduísmo e nazismo.
No país, como na Índia, o temor da maioria governista de perder o poder serviu como uma ferramenta efetiva de recrutamento.
“Desde meados do governo Obama, o fator mais importante na mente dos que se uniram ao Tea Party é a ideia de que os brancos estão perdendo privilégios”, diz o pesquisador e escritor Chip Berlet, para quem isso ajudou a engrossar as fileiras da extrema direita e grupos supremacistas brancos.
Reprodução/Rota-176 Narendra Modi Foto: BBCBrasil.com
As obras de Savitri Devi já fazem parte da história tanto do nacionalismo hindu quanto da extrema direita europeia e americana, uma vez que seus textos excêntricos contêm – sem filtros e sem censura – todas suas ideias-chave.
Ideias como a de que os humanos podem ser divididos em “raças” que devem permanecer separadas e que alguns grupos são superiores a outros e têm mais direitos. Em seus textos, ela defendeu ainda que “grupos superiores” estão sob ameaça e que o período de trevas em que vivemos só chegará ao fim quando eles recuperarem o poder, voltando à mítica era dourada.
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