ROTANEWS176 E DELAS 25/04/2018 09:43 Por Fernanda Labate
Para Kalu Gonçalves, que teve um orgasmo enquanto dava à luz seu filho sem saber que isso era possível, pensar no parto como parte da sexualidade e se fazer protagonista do momento ajuda a afastar a dor e alcançar o prazer
Para quem sonha em ser mãe, o parto é um dos momentos mais marcantes da vida. Apesar de se tratar de um evento para o qual a maioria delas se prepara durante a gestação inteira – e do qual se lembrarão para sempre –, muitas têm em mente a ideia de que ele necessariamente fará com que elas sintam dor e passem por algum tipo de sofrimento.
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Apesar de complicações serem algo possível, a doula Kalu Gonçalves afirma que grande parte do sofrimento pelo qual muitas delas passam na hora do parto é gerada tanto pela ideia de que ele certamente será doloroso quanto pelo modelo agressivo e frio com o qual elas podem se deparar. No entanto, segundo ela, dar à luz não precisa ser algo traumático e pode inclusive ser uma explosão de prazer.
A doula explica que, apesar da estranheza em relacionar um prazer normalmente atrelado ao sexo ao nascimento de uma criança, as duas coisas estão, sim, intimamente ligadas. “O ato de dar à luz e a sexualidade são coisas que andam muito juntas, não só pelos hormônios que estão envolvidos. Na maioria dos casos, o parto é o fim de um processo que começou no ato sexual, né? Ele representa o apogeu da vida sexual da mulher”, afirma.
Sensações inesperadas e parto “orgásmico”
Reprodução/Foto-RN176 Antes de dar à luz e tornar-se doula, Kalu Gonçalves não sabia que um parto podia ser algo tão prazeroso quanto foi o dela – Arquivo pessoal
Há onze anos, antes de se tornar doula e começar a assistir mulheres durante seus partos, Kalu engravidou e embarcou no processo pelo qual a maior parte das grávidas passa: o de escolher um obstetra e fazer consultas regulares com ele para monitorar o desenvolvimento do bebê. No entanto, conforme a gestação se aproximava do final, a moça percebeu que não estava totalmente confortável com essa escolha.
“Antes de engravidar, eu não sabia como deveria ser a relação entre alguém que você escolhe para te acompanhar na relação e a gestante. Ele [obstetra] agia comigo da maneira como ele aprendeu na faculdade. O que ele fazia é o que fazia sempre, não olhava no meu rosto, não me ouvia, me pesava e fazia o ultrassom. Hoje, eu sei que uma gestante precisa de muito mais”, relata a doula.
Quando chegou à 33ª semana da gestação, Kalu conta que se deu uma “carta de alforria” e decidiu que não continuaria a monitorar a gravidez daquela forma. Nesse momento, ela resolveu que teria seu bebê em casa. “Eu queria um ambiente em que estivesse segura, protegida e em que pudesse me entregar com liberdade. Resolvi me entregar para um processo em que eu era a protagonista, em que eu dizia o que queria e a forma como queria”, afirma.
“ Quando meu filho deslizou, eu senti realmente um orgasmo muito profundo. É uma apoteose, um estado de êxtase inacreditável”
Kalu conta que, quando entrou em trabalho de parto, sentiu que estava com a libido em alta – algo que também aconteceu em alguns momentos durante a gestação – e decidiu que, por estar em casa, se permitiria prestar total atenção nessas sensações.
Segundo ela, apesar de isso ser algo raro, ela não teve dores quando as contrações começaram. “Eu sentia a contratura muscular da barriga, mas não sentia a cólica. Dormi durante as contrações”, relata.
Conforme as contrações começaram, Kalu foi examinada por enfermeiras mas, como estava tranquila, elas foram embora e a moça seguiu dormindo. Quando acordou, porém, percebeu que seus sentidos estavam alterados, fazendo com que ela percebesse cheiros com mais intensidade e ficasse com a audição mais aguçada. “Eu sentia meu corpo todo trabalhando na potência máxima”, narra.
Durante esses momentos, Kalu afirma que optou por ficar sozinha, conectando-se com o próprio corpo. Quando decidiu tomar um banho, sentiu a bolsa estourando e uma necessidade forte e intensa de empurrar. Com as parteiras em casa, ela diz ter se entregado completamente à essa sensação que, segundo ela, era indescritivelmente prazerosa.
Reprodução/Foto-RN176 Segundo a doula, ser protagonista do parto e entregar-se às sensações dele resultou em “um estado de êxtase inacreditável” – Arquivo pessoal
“Estava sozinha nesse momento e fui me entregando para essa sensação. O períneo distendido, os movimentos do bebê dentro do meu corpo… Quando meu filho deslizou, eu senti realmente um orgasmo muito profundo. É uma apoteose, um estado de êxtase inacreditável”, descreve Kalu, que, inspirada pela própria experiência, fez um curso de doula alguns anos depois e já viu outras mulheres passarem por situações tão intensas quanto essa.
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Por que algumas sentem dor e outras sentem prazer?
Tanto de acordo com Kalu quanto com a ginecologista e obstetra Erica Mantelli, há muito em comum entre o momento de dar à luz um bebê e o sexo. A médica explica que a possibilidade de as mulheres sentirem prazer durante o parto se torna possível porque o hormônio que rege esse processo, a ocitocina, é o mesmo que está elevado durante relações sexuais e que traz as sensações boas relacionadas ao momento.
Além da ocitocina e da adrenalina – que é liberada durante a expulsão do bebê, semelhante ao que ocorre durante o ápice do prazer no ato sexual –, há também uma questão anatômica que ajuda a proporcionar esse tipo de sensação. Segundo Erica, as contrações que ocorrem no corpo para ajudar o bebê a passar pelo canal vaginal são um estímulo físico semelhante ao que ocorre durante o ato sexual.
Mas, se o corpo das mulheres está preparado para expulsar um bebê tranquilamente e em meio a sensações de prazer tão intensas, por que tantas sentem dores excruciantes e lembram do parto como um momento traumático? Para explicar, Kalu faz outro paralelo entre esse momento e a vida sexual da mulher.
“ Acho que as mulheres têm partos dolorosos e traumáticos pelo mesmo motivo pelo qual nós mulheres ainda sofremos tantos abusos e violência na nossa vida”
Segundo a doula, tudo tem a ver com a entrega da mulher ao momento e com a liberdade que ela tem de determinar como tudo vai acontecer.
Para ela, é algo parecido com a primeira vez de uma mulher no sexo; quando ela é mais “esclarecida”, se conhece e sabe em quais lugares gosta de ser tocada, normalmente ela tem uma resposta mais positiva do corpo e sente mais prazer.
A obstetra também concorda com a doula nesse ponto. “Isso [orgasmo ao dar à luz] ocorre principalmente com mulheres que estão totalmente entregues ao trabalho de parto, que não têm tabus, que estão vivenciando o parto da maneira que elas planejaram. Com isso, elas conseguem transformar a sensação de dor e vivenciar isso de uma forma tão intensa e íntima que conseguem ter prazer”, explica Erica.
Além do conhecimento sobre o próprio corpo, da liberdade gerada quando se é protagonista desse momento e da entrega às sensações, há ainda outra questão que transcende aspectos fisiológicos e influencia o bem-estar da mulher na hora de ter um bebê: o sistema ao qual muitas são submetidas.
“A maioria das mulheres tem partos traumáticos porque o modelo a que somos submetidas é muito semelhante aos modelos machistas que também enfrentamos em nossa primeira relação sexual e aos quais somos submetidas muitas vezes na vida, em que o prazer da mulher é deixado de lado”, afirma.
Ao falar desse modelo, Kalu cita aspectos que estão presentes em muitos partos hospitalares ou mal conduzidos como inibidores de prazer e facilitadores da dor. Segundo ela, ter em mente a ideia de que dar à luz dói, ter de fazer exames de toque em excesso, ter um número muito grande de pessoas envolvidas no processo, não ter o direito de comer, beber, andar e às vezes até de escolher um acompanhante na “hora H” são fatores que levam muitas mulheres a momentos conturbados e traumáticos.
“Se a gente for classificar o parto como um evento da sexualidade feminina, muitas vezes o que essas mulheres vivem é um estupro. Acho que as mulheres têm partos dolorosos e traumáticos pelo mesmo motivo pelo qual nós mulheres ainda sofremos tantos abusos e violência na nossa vida doméstica e cotidiana”, comenta a doula, se referindo ao fato de que, muitas vezes, a medicina negligencia o bem-estar e as escolhas da mulher em diversas situações.
Existe preparação para um parto prazeroso?
Kalu conta que, quando estava grávida, não recebeu dicas sobre como tornar seu parto prazeroso e se preparou para o momento conforme achou que deveria. Após passar por essa experiência repleta de prazer, chegou a duvidar do que aconteceu, já que nunca tinha ouvido falar sobre uma situação assim.
“Na época, eu fiquei questionando: ‘Será que eu tive mesmo?’, ‘será que não foi um alívio?’, ‘será que não foi uma mistura de emoções?’”, conta, explicando que só teve certeza de que realmente alcançou um orgasmo naquele momento quando assistiu ao documentário “Orgasmic Birth”, que conta histórias semelhantes à dela.
Por não ter seguido uma preparação específica e mal saber que algo assim era possível na época, Kalu afirma que não há um “passo a passo” para uma experiência orgásmica no momento de dar à luz, mas que há alguns fatores que devem ser levados em conta. “Ter ou não um orgasmo no parto é uma questão sensacionalista até, mas se preparar para um parto prazeroso deveria ser o foco de todas as mulheres”, comenta. Para mulheres que buscam uma experiência, o essencial é:
- Rever os conceitos sobre o parto
Segundo Kalu, algo bastante importante é repensar a noção que temos desse momento. Apesar da dor ser uma das primeiras coisas em que se pensa quando se fala em dar à luz, fatores físicos e emocionais possibilitam, sim, que ela seja contornada e até inibida.
Para a doula, uma forma de encarar melhor esse conceito é pensar nele como um orgasmo; é claro que a capacidade de chegar ao ápice do prazer em uma relação sexual não depende do amor para acontecer, mas o momento pode ser favorecido quando há mais fatores – como carinho, cuidado, conexão com a pessoa, etc – envolvidos além da estimulação sexual em si.
“[O orgasmo] é o ápice de algo que foi construído ao longo de todo um processo. Acho que, se a gente pudesse enxergar o parto dessa maneira, estaríamos mais aptas a olhar mais para o prazer inerente ao processo do que para a dor que, de fato, existe para a maioria das mulheres, mas que não precisa ser tão relevante assim”, comenta a doula. Nesse momento, é bom, por exemplo, buscar relatos de mulheres que tiveram partos tranquilos e positivos para “virar a chavinha” e deixar de pensar apenas na parte ruim.
- Tomar as rédeas da situação
Assim como Kalu, que optou por deixar um modelo mais “tradicional” de lado e ter seu bebê em casa, tomando as decisões durante todo o processo, é muito importante que a mulher seja a protagonista desse momento. Sendo assim, a ideia é dar ouvidos às próprias vontades e não se deixar levar pelo que deu certo para outras pessoas ou permitir que alguém decida por ela. Isso serve desde a escolha da assistência para o momento de dar à luz até para a hora de decidir quem fica ou não presente quando a chega a hora.
- Escolher um ambiente confortável e uma assistência segura
Optar pelo local e pelas pessoas que mais agradam a mulher e fazem com que ela se sinta segura é algo que também faz parte de ser a protagonista desse momento. Se ela se sente melhor e mais segura em um hospital, pode optar por ele. Se o ideal para ela for a própria casa, seja em uma banheira ou na cama, ela também tem o direito de ter seu bebê ali.
Quanto as pessoas que vão assistir a mulher durante o processo, Kalu aconselha a fazer mais um paralelo entre a situação e um relacionamento amoroso. “É uma figura que se assemelha a um abusador ou uma figura que se assemelha a um bom amante?”, questiona ela, referindo-se ao fato de que muitos profissionais não dão importância ao que as mulheres dizem e sentem, assim como parceiros abusivos fazem na relação.
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- Baixar as expectativas
Apesar de ser, sim, possível ter um parto orgásmico e substituir a dor pelo prazer intenso, Kalu aconselha não mergulhar em uma busca incessante por esse objetivo e prestar mais atenção na construção do processo. “Não pode romantizar, porque a expectativa gera uma frustração. O que as mulheres precisam fazer é trabalhar suas questões, suas feridas, sua autonomia. Essa construção é fundamental para que essas mulheres tenham um parto prazeroso ou não”, conclui.