Tingir a vida de esperança

ROTANEWS176 E POR JORNAL BRASIL SEIKYO 24/11/2022 14:10                                                                        RELATO DA REDAÇÃO

Os bastidores da jornada de Dayane, que faz de sua juventude exemplo de força e determinação na concretização dos sonhos

 

Reprodução/Foto-RN176 Dayane Lopes de Medeiros, Responsável pela Divisão Feminina de Jovens do Distrito Caicó, RM Rio Grande do Norte, CRE Leste – Foto: Arquivo pessoal

Desde cedo, essa jovem nordestina aprendeu a se virar sozinha, a ter disciplina e a driblar as agruras do destino. Dayane Lopes de Medeiros, 30 anos, mora na cidade de Caicó, RN, tendo sido criada na cidade vizinha de São Fernando, local em que conheceu o Budismo Nichiren junto com a mãe. A adolescência de sofrimentos e de conflitos aos poucos vai se colorindo de um forte azul de esperança. Responsável pela Divisão Feminina de Jovens do Distrito Caicó Norte e secretária da banda feminina Asas da Paz Kotekitai do Brasil (APKB) do estado, Dayane comprova a força que um ambiente acolhedor e de propósitos pode exercer na vida de uma jovem. O clarinete em duas frentes de atua­ção em prol da música, o avanço educacional em direitos humanos e a expansão do humanismo Soka pelo nordeste — são algumas das conquistas que Dayane divide com os leitores nesta edição.

A infância desafiadora

Vivíamos em meio à pobreza, com minha condição de saúde fragilizada e muita desarmonia familiar. Morávamos em São Fernando, RN: minha mãe, Marlene, minha irmã caçula, Jéssica, que amo demais, e eu. A renda que tínhamos para a alimentação e para o resto era uma pensão que meu pai dava no valor de 35 reais semanais. Eles eram separados desde os meus 4 anos.

O Budismo Nichiren nos foi apresentado por uma veterana quando eu tinha 9 anos. Minha mãe era alcóolatra e, ao conhecer o Nam-myoho-renge-kyo, passou a praticá-lo e eu também. Contudo, fui estudá-lo para entender se eu realmente gostava do que estava fazendo. Tinha muitos conflitos. Sempre fui simpática, porém era estressada, arrogante e revoltada. Meu primeiro objetivo foi transformar uma insônia que me rondava. Logo nos primeiros meses de oração, transformei essa condição. Então, veio o segundo objetivo, a prova real para uma adolescente em busca de um sentido de vida: surgiram verrugas em meu corpo, numa quantidade inimaginável. Mesmo em consulta com médicos e especialistas, nada adiantava. Desafiei intenso daimoku, incentivada por aquela senhora que nos apresentou o budismo. As verrugas continuaram a aumentar, e eu, a me desesperar. No entanto, persisti e aos poucos foram desaparecendo, sem deixar marca. Fiz um juramento de praticar esse ensinamento por todas as minhas existências e ensiná-lo para as pessoas à minha volta para que sentissem a mesma alegria que eu. Após essa transformação, várias outras foram acontecendo. Minha mãe adoeceu por causa da bebida e fiz muito daimoku pela recupera­ção dela, o que se deu tão logo objetivei. Conseguimos nossa casa própria. Nesse meio-tempo, minha irmã Jéssica também iniciou a prática e nós três estávamos sempre respaldadas pela prática da fé.

Música, estudos e amor

Ali estava eu confiante e feliz, empenhando-me em uma grande luta pela expansão do humanismo Soka em minha localidade, junto com minha família e os companheiros. Apresentei o budismo a vários jovens que hoje fazem parte da nossa BSGI. Paixão imensa também pela Asas da Paz Kotekitai do Brasil, banda feminina da nossa organização e para a qual determinei entrar assim que a vi pela primeira vez. Fiquei tão emocionada que avancei na realização do sonho: decidi que em minha cidade teríamos uma banda na qual aprenderia a tocar um instrumento musical, ganharia esse instrumento e, em seguida, eu o levaria para os ensaios da Asas em Caicó (cidade vizinha onde funcionava o restante da organização). E consegui! Minha cidade foi agraciada com um pro­jeto de filarmônicas, com oferecimento de instrumentos, de maestro e das condições para organização da banda. Entrei e permaneci por sete anos na Filarmônica de São Fernando, saindo em 2015. Hoje, tenho meu próprio instrumento musical e sou secretária da Asas Kotekitai do meu estado. Aprendo diariamente o significado de “transformação”, pois, a cada desafio que surge, eu me sinto encorajada. Assim como diz a frase do poema Anjos da Paz Kotekitai do Brasil de Daisaku Ikeda, presidente da Soka Gakkai Internacional (SGI): “Nem baionetas, sequer armas de fogo, / com um mero pífano e tambor, vocês tocam o ritmo básico deste universo místico”.1 Sou muito grata por esses catorze anos no grupo.

Reprodução/Foto-RN176 Com o companheiro Renan – Foto: Arquivo pessoal

Aos 27 anos, iniciei formação em pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e conheci Renan, em 2017, companheiro e amor com quem moro até hoje. Ele começou a praticar o budismo desde o início do nosso relacionamento e juntos superamos muitos desafios. Nunca deixei de lutar pelo kosen-rufu (movimento em prol da paz desenvolvido pelos membros da Soka Gakkai).

A fortuna de ter boa sorte

Sou muito sortuda e protegida pela prática, assim me defino. Em meio à faculdade e alguns problemas pessoais, meu companheiro e eu fomos morar em Caicó. Consegui um estágio numa escola perto da casa do meu sogro e Renan obteve um emprego numa fábrica de bonés. Na organização, ele assumiu a função de responsável pela Divisão Masculina de Jovens (DMJ) de bloco, depois vice-responsável pela comunidade. Eu me tornei vice-líder da Divisão Feminina de Jovens (DFJ) de distrito, que me possibilitou imensa luta em meio à pandemia da Covid-19. Em 2021, assumi a liderança das meninas do Distrito Caicó Norte e, a partir daquele instante, tudo em minha vida pareceu transformar em ponto de bala. Os companheiros me receberam com muito amor e proteção.

Vencer, a única opção

Atuar na Soka Gakkai faz a gente se desafiar e concretizar os sonhos que, por vezes, consideramos impossíveis ou que ficam represados em nosso coração. A gente aprende a romper limites. Sempre fui muito aplicada nos estudos e buscava avançar na especialização em educação. Deixei de trabalhar no ano passado e contei com bolsa da faculdade, por escolha própria. Queria focar em pesquisa universitária, mas minha bolsa era de extensão.

Reprodução/Foto-RN176 Dayane com a mãe, a irmã e a sobrinha – Foto: Arquivo pessoal

Em meio à luta na organização de base, recebi um convite para me inscrever no Curso de Primavera da Juventude Soka, neste ano (2022), no Centro Cultural Campestre (CCCamp) da BSGI, em Itapevi, SP. Fui selecionada para representar a RM Rio Grande do Norte e a RM Natal. Nunca tinha viajado para São Paulo e ainda sozinha. Porém, sempre com o apoio das minhas lideranças, iniciei a recitação resoluta de daimoku. Maldades surgem. No mesmo período em que arrumei um emprego temporário para complementar as despesas de viagem, meu pai precisou amputar o pé, causado pelo vício de cigarro.

No dia 18 de agosto, meu aniversário de 30 anos, fui demitida. Eu não havia comprado a passagem e faltavam menos de vinte dias para o encontro em São Paulo. À noite, fiquei no hospital com meu pai após a cirurgia dele. Estava tranquila, com a certeza da vitória. Muita gratidão, pois, estar naquela noite com ele e saber que a cirurgia fora um sucesso, me fez viver o melhor aniversário, de poder saldar a dívida de gra­tidão com os pais, conforme nosso mestre ensina.

Uma conquista e tanto. A alta do meu pai foi em dois dias e consegui comprar minha passagem parcelada. Viajei radiante e feliz. Pude reafirmar na Academia Índigo Juventude Soka do Brasil os trechos do poema A Estrada, no qual Ikeda sensei exalta: “Existe uma estrada / E essa é a estrada que eu amo / Eu a escolhi. / Quando trilho essa estrada, as esperanças brotam / E o sorriso se abre em meu rosto. / Dessa estrada nunca, jamais fugirei”.2

Reprodução/Foto-RN176 Primeira atividade presencial com pares da liderança do Distrito Caicó – Foto: Arquivo pessoal

Ao presenciar tantos jovens dialogando sobre o movimento pela paz do qual fazemos parte e a luta que cada um realizou para estar ali, eu me senti imensamente instigada a continuar a batalhar na minha localidade e ver outros jovens indo para atividades tão enriquecedoras. Já voltamos com algumas reuniões presenciais e neste mês promovemos uma atividade com estudantes, os quais trouxeram seus convidados. Estamos com as três comunidades funcionando ativamente.

Futuro de esperança

Lembram-se do objetivo que comentei de avançar nos estudos? Bem, enquanto empreendia uma luta para fazer o curso da juventude Soka, em São Paulo, fui aprovada num processo seletivo para bolsa pesquisa de estudos em Paulo Freire (com a melhor professora orientadora de todas, a meu ver, Maria Aparecida Vieira de Melo), que me incentiva, ajuda e encoraja. Quanta boa sorte!

Atualmente, estou fazendo trabalho de conclusão com o título “Formação de Professores com Práticas Pedagógicas Promotoras dos Direitos Humanos na Ótica Decolonial”, filiando-me a outros grupos com ideais de paz simila­res ao da Gakkai e me encaminhando para o mestrado.

Tenho toda a proteção do univer­so, pois oro Nam-myoho-renge-kyo, que me empodera de coragem para enxergar o futuro de forma vibrante e a agir com sabedoria. Tenho um companheiro de vida maravilhoso, a melhor família e a organização BSGI, me proporciona moldar meu interior para cada dia eu ser mais humilde, determinada, corajosa, sonhadora e feliz.

Reprodução/Foto-RN176 Dayane, à dir., com amigas do grupo de estudos. A professora Maria Aparecida está no centro da imagem – Fotos: Arquivo pessoal

Mudei muito de nove anos para cá, mas viver é uma contínua transformação. Fui uma menina difícil de lidar, criei barreiras e muros que até hoje luto para derrubar. Possuo a boa sorte de ter as melhores líderes, que nunca soltaram a minha mão, e de contar com o apoio, cuidado e carinho das outras divisões. Agradeço imensamente a Ikeda sensei por me guiar na luta pela paz, cultura e educação, que é a minha essência. Gostaria de deixar uma frase do livro Educação Soka, de autoria dele:

Aqueles que cultivam os valores do belo, do benefício e do bem, onde quer que estejam, e sob quaisquer circunstâncias em que se encontrem, são pessoas sábias. A atitude de polir a própria vida e desenvolver esse tipo de sabedoria é o significado de criação de valor (soka).3

Muito obrigada!

Dayane Lopes de Medeiros, 30 anos. Estudante bolsista. Responsável pela Divisão Feminina de Jovens do Distrito Caicó, RM Rio Grande do Norte, CRE Leste.

Dayane, pela orientadora educacional

Todo o processo de ensino-aprendizagem entra além do processo da sala de aula. Desse modo, ter a participação da estudante Dayane Lopes no grupo de estudos e pesquisas da educação em Paulo Freire faz com que o processo de ensinagem transcenda a relação interpessoal em sala de aula. Assim, fortalecemos o vínculo afetivo, pois somos seres de relação.

A sua participação em nosso grupo tem feito um grande diferencial, pois ela possui um potencial extraordinário e isso se evidencia em seus escritos, com uma escrita humanizadora, esperançosa e muito aguerrida de uma força de vontade de outro mundo possível de construir.

Maria Aparecida Vieira de Melo, professora doutora em educação, UFRN Ceres e Cpfreire. Líder do grupo de estudos e pesquisas da educação em Paulo Freire

Notas:

  1. Brasil Seikyo, ed. 1.822, 3 dez. 2005, p. A7.
  2. Terceira Civilização, ed. 485, jan. 2009, p. 43.
  3. IKEDA, Daisaku. Educação Soka. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2010. p. 144.

Fotos: Arquivo pessoal