ROTANEWS176 E IG 22/04/2015 10:10
CULTURA DO MUNDO
Apesar de condenada pela ONU, países da África e no Oriente Médio mantêm a prática; a mutilação consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina
Reprodução/Foto-RN176 Tanzania Development Trust Boche, de 10 anos, teve pedaço do tornozelo arrancado pelo pai na Tanzânia por se recusar a se submeter à mutilação genital
A gaze ao redor do tornozelo esquerdo da pequena Boche, de 10 anos, esconde o que seu olhar triste não consegue disfarçar. Após se recusar a ter as partes genitais mutiladas, a criança que mora em uma aldeia do norte da Tanzânia teve o pedaço da pele da perna arrancada à faca pelo próprio pai.
Boche faz parte do contingente de milhões de meninas e mulheres que vivem em países da África e do Oriente Médio onde persiste a prática da mutilação genital feminina, uma tradição de ao menos cinco mil anos de história que consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina. Em alguns locais o corte ainda é feito à navalha.
O procedimento teria função sanitária – a mulher se tornaria mais limpa após o ato – e também atenderia a questões culturiais: o clitóris é visto por sociedades patriarcais como a falsa representação do pênis e, portanto, competiria com a virilidade masculina. Na maioria dos casos, a mutilação da vagina veta à mulher o direito ao prazer sexual.
Reprodução/Foto-RN176 Sob estas condições, sem nenhum tipo de anestesia e sem tomar nenhuma medida de higiene, a mulher mutila a criança, enquanto esta só grito e chora pela dor lacerante que e sente. No interior deste lugar, não são derramados sangue e dor enquanto do lado de fora os familiares riem e celebram que a menina está pronta para se tornar uma mulher.
De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, a mutilação genital é realizada em cerca de 3 milhões de meninas e mulheres todos os anos e se concentra em 29 países entre o continente africano e o Oriente Médio.
Até agora, mais de 130 milhões de meninas e mulheres já foram submetidas ao procedimento e, se essa tendência for mantida, outras 30 milhões poderão ser mutiladas nos próximos dez anos. Somado ao impacto do crescimento populacional, o índice pode atingir 63 milhões até 2050, de acordo com o Unicef.
“De todas as histórias que eu já presenciei, a de Boche é a que mais me comoveu. Ela é só uma criança…”, diz ao iG Julian Marcus, presidente da Tanzânia Development Trust (TDT), ONG que acolhe vítimas da mutilação e ajuda a erradicar a cultura no país e para onde Boche foi encaminhada.
Entre os países que praticam a circuncisão feminina, a Somália tem o maior número de casos: 98% das mulheres entre 15 e 49 anos já tiveram a vagina mutilada, segundo o estudo “Female Genital Mutilation/Cutting: A statistical overview and exploration of the dynamics of change”, do Unicef, divulgado em 2013. A Guiné tem o segundo maior índice, 96%. Djibouti e Egito têm, respectivamente, 93% e 91% da população feminina mutilada. Em Eritreia e no Mali, o número chega a 89%. Em Serra Leoa e no Sudão, a prevalência é de 88%.
Formas de mutilação
Em dezembro de 2012, uma resolução da ONU (67/146) condenou a prática. Para dribá-la, no entanto, alguns países têm medicalizado o procedimento. No Egito, por exemplo, o corte no clitóris é feito superficialmente por profissionais de saúde treinados, o que reduz o risco de infecções e morte da paciente.
Mas esse não parece ser o procedimento padrão em todos os países listados pelo Unicef. Théo Lermer, ginecologista, sexólogo e colaborador do ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas (HC), explica que tribos ainda realizam a mutilação genital extrema, onde a mulher tem o clitóris e os pequenos lábios arrancados por meio de facões e navalhas sem o menor nível de profilaxia.
Reprodução/Foto-RN176 Waris Dirie durante pronunciamento sobre mutilação genital feminina na ONU (Arquivo).
“Nesses casos, a vagina é costurada e se torna, basicamente, os orifícios para urinar e menstruar. Depois disso, durante a relação sexual, essa mulher sente bastante dor e, quando engravida, corre sério risco de morrer. Se ambos sobreviverem, é provável que a mulher sofra com fístulas”, afirma.
Para Melanie Sharpe, assessora de imprensa do Unicef em Nova York, “acabar com a mutilação genital não é uma questão de simplesmente impor valores. O fim da prática é uma ação que inclui governos nacionais, líderes religiosos locais, os meios de comunicação e o mais importante, comunidades e famílias”.
Questão de cultura
A origem da mutilação genital feminina é milenar, mas incerta. Segundo Olga Regina Zigelli Garcia, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), há estudiosos que apontam para a época da venda de escravas no mercado árabe – elas seriam circuncidadas antes do negócio. Outros falam da invasão do Vale do Nilo por tribos nômades que realizavam o procedimento e o espalharam pelo Egito e países vizinhos por difusão nos anos 3.100 a.C.
Para Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da Unesp, Universidade Estadual Paulista, como a mutilação genital feminina tem uma representatividade grande nas sociedades africanas, sua permanência deve ser discutida e, em muitos casos, respeitada.
“Essa é uma cultura que passa de geração para geração. Para nós, por exemplo, é normal a mulher fazer cirurgia de reconstituição de hímen para ficar virgem novamente. Se a circuncisão não for total e a mulher quiser manter a tradição, não acho que deveria ser erradicada”, pondera.
Já a socióloga Olga considera a mutilação genital uma violação dos direitos humanos e herança das sociedades patriarcais e, por isso, não deve ser mantido apenas por seu “questionável valor cultural”.
“A prática, além de violar a dignidade humana, também viola os direitos da criança, já que meninas entre quatro e oito anos também são violadas. Não podemos legitimar crueldades e desigualdades com a desculpa da tradição”, afirma.
Foi para apresentar a filha à sociedade que o pai da tanzaniana Verônica, de 14 anos, quis obrigá-la a se submeter ao ritual. Durante seu relato para a ONG que a acolheu, a jovem afirmou ter sido informada de que “deveria ser mutilada porque tinha terminado a escola primária e já tinha idade para casar.”
Reprodução/Foto-RN176 Unicef Mapa dos países com maior número de mulheres e crianças submetidas à mutilação genital na África
Como se recusou, a adolescente passou a ser espancada sistematicamente pelo pai. “Meu pai dizia que com a mutilação eu teria um dote maior. Seriam cinco vacas que meu pai utilizaria para vender e mandar meu irmão para uma escola particular”, disse ela em depoimento à BBC. Verônica fugiu de casa e buscou refúgio na Tanzânia Development Trust (TDT).
O Fundo de População das Nações Unidas, que atua em 22 países do continente, afirma que cerca de oito mil comunidades na África concordaram em abandonar a mutilação genital feminina. De acordo com Melanie Sharpe, foi criado em 2008 um programa conjunto entre o Unicef e o UNFPA para acelerar a mudança em 15 países da África Ocidental, Oriental e do Norte.
Cenário econômico e social
A baixa escolaridade e os níveis expressivos de pobreza ajudam a difundir e manter a prática no continente africano, segundo a ONU. O continente, cuja população geral ultrapassa os 889 milhões de habitantes, tem algumas das áreas com os piores níveis de saneamento básico do mundo.
Na África Subsaariana – que abrange países como Tanzânia, Somália, entre outros – o porcentual de saneamento básico não passa de 30%. Metade da população vive com menos de um dólar por dia e até dois terços dos países estão entre os que têm os menores IDHs.
É nessa região que há também a maior prevalência de favelas urbanas do planeta: elas devem abrigar 400 milhões de pessoas em 2020. O rápido crescimento urbano e a falta de planejamento têm aumentado os assentamentos impróprios e, por consequência, o número de catástrofes recorrentes de desabamentos, entre outros.