Trecho de ‘carta proibida’ de Mário de Andrade a Manoel Bandeira cita a ‘tão falada homossexualidade

ROTANEWS176 E AGÊNCIA BRASIL 19/06/2015 11:00

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1Reprodução/Foto-RN176  foi um poeta, escritor, critico literário, musicólogo, folclorista, ensaísta brasileiro.Mário Raul Moraes de Andrade (Mário de Andrade), homenageado da Flip 2015 (Foto: Secult/Divulgação e USP/Divulgação)

Uma carta delicada e elegante com mais de quatro páginas, datilografada, trocada entre dois amigos de letras, com confidências, um pouco de intriga e comentários profissionais. Assim é a carta enviada por Mário de Andrade, no dia 7 de abril de 1928, a Manuel Bandeira, mantida sob sigilo, a pedido da família de Mário de Andrade, cujo teor foi divulgado na noite de ontem.

Manú, recebi a carta. Está tudo certo. Ou, por outras, tem certos argumentos nela irretorquíveis. Apenas não vejo em que a minha chamada por você ‘delicadeza moral’ possa prejudicar uma integridade absoluta de amizade entre nós dois”.

O texto já havia sido publicado no livro Cartas a Manuel Bandeira, organizado por Bandeira em 1958, porém, 26 linhas foram suprimidas, entre a terceira e a quarta páginas. No original, a parte omitida por Bandeira aparece com riscos a lápis vermelho na transversal. Para o pesquisador de Mário de Andrade e o professor de filosofia Eduardo Jardim, a carta, além de muito bonita, não traz nenhuma revelação sobre a sexualidade do autor, como chegou a ser especulado.

Outras cartas do Mário para Manuel Bandeira, inclusive de período anterior a essa, já tinham mencionado esse comentário que se fazia sobre a homossexualidade dele. [Em] uma de 1924, se não me engano, ele fala ‘será que eu vou ter que fazer o tour dos bordéis de São Paulo?’. Então essa carta não traz nada que vá alterar a visão de biografia de Mário de Andrade que a gente já tem”, segundo Jardim.

Ele lembra que a obra de Mário de Andrade é carregada de sensualidade, carga erótica, e fala sobre a hipocrisia da sociedade, tratada na carta com a palavra “sequestro” que, segundo o filósofo, se refere ao recalque descrito pelo psicanalista Sigmund Freud, contemporâneo de Mário e referência em sua obra.

No entender de Jardim, “a literatura de ficção deles, os contos, romances como Amar, Verbo Intransitivo, são denúncias que ele faz da moral hipócrita da época sobre o comportamento sexual das mulheres, dos homens e inclusive dos homens homossexuais. Ele não era um autor careta, ele abordava essas coisas”.

Jardim destaca que Mário de Andrade escreveu mais de 400 cartas para Manuel Bandeira. “É um conjunto precioso”, diz. Segundo ele, a estimativa é que Andrade tenha escrito mais de 15 mil cartas, e agora que o conteúdo dessa foi revelado, os pesquisadores devem se dedicar a temas mais interessantes sobre a vida do escritor.

Foi bom que isso acontecesse – a revelação do conteúdo – e que tivesse havido essa conversa toda, porque com isso resolvido é como se a gente se sentisse liberado para falar do Mário de Andrade de tantas outras coisas que ainda precisam ser discutidas. É como se isso estivesse ocupando o lugar de uma discussão que agora a gente vai poder ter, eu sinto isso. Foi bom”, esclareceu Jardim.

O acervo de Manuel Bandeira foi entregue em 1978 para guarda da Fundação Casa de Ruy Barbosa (FCRB), instituição ligada ao Ministério da Cultura. Em 1995 houve análise sobre o sigilo das correspondências, quando completaram-se 50 anos da morte de Mário de Andrade. Segundo a presidenta da FCRB, Lia Calabre, a carta-testamento de Andrade dava esse prazo para divulgação de suas cartas. Porém, uma interpretação da família do escritor impediu que essa fosse aberta a pesquisadores, alegando que a divulgação autorizada seria das cartas recebidas por ele, e não das enviadas.

A gente não pode esquecer que a correspondência é um documento ultraprivado, e a correspondência que o sujeito guarda é a que ele recebe, a correspondência do outro. Por isso, estamos falando do acervo de Manuel Bandeira e uma carta do Mário de Andrade. Nós somos uma instituição de guarda, mas não somos detentores dos direitos autorais de nada que está aqui”, ressaltou.

Ela lembra que o conteúdo cai em domínio público no ano anterior aos 70 anos de morte de Mário de Andrade, em 2016. A divulgação para pesquisa da carta, sem autorização para imagem, foi autorizada pela Controladoria-Geral da União, que recebeu pedido via Lei de Acesso à Informação. De acordo com Lia, o processo levou a instituição a repensar a política de guarda de documentos privados por organizações públicas.

Leia, abaixo, o trecho revelado (foi mantida a grafia original):

“Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e eu elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero que há nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros? Não adiantava nada pra mim porquê em toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só me interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialisão absolutamente desprezível duma verdade inicial. Quanto a mim pessoalmente, num caso tão decisivo pra minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu, ha-de estar bem inteirado do assunto, ha-de te-lo bem catalogado e especificado, ha-de ter tudo ‘normalisado’ em si, si é que posso me servir de ‘normalisar’ neste caso. Tanto mais, Manú, que o ridículo dos socializadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruências e contradições em que caem.: O caso da ‘Maria’ não é típico? Me dão todos os vícios que, por ignorância ou por interesse de intriga, são por eles considerados ridículos e no entanto assim que fiz duma realidade penosa a ‘Maria’, não teve nenhum que não [palavra não estava riscada no original] caçoasse falando que aquilo era idealização pra desencaminhar os que me acreditavam nem sei o quê, mas todos falaram que era fulana de tal.

Mas si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui, a sair sozinho comigo na rua (veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de previsão) e si saio com alguém é porquê se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas. Ah, Manú, disso só eu mesmo posso falar, e me deixe que ao menos pra você, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou duma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros num caso como este onde o físico  que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis.

Eis aí uns pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequência. Faça deles o que quiser”.

Com informações da Agência Brasil.