Véus e muçulmanas: tradição religiosa levou uma mulher à morte no Irã

ROTANEWS176 E POR ISTOÉ 30/09/2022 9:30                                                                                                          Por Denise Mirás

 A morte não-esclarecida de uma jovem em uma delegacia no Irã motiva protestos em todo o mundo e expõe uma violência inadmissível contra as mulheres por causa das vestes muçulmanas

 

Reprodução/Foto-RN176 TRADIÇÃO O guarda-roupa da mulher muçulmana combina os véus (aqui, o hajib) com cada vestimenta (Crédito: istockphoto)

Mahsa Amini, 22 anos, saiu do Curdistão para um passeio em Teerã, onde foi abordada pela chamada “polícia da moralidade”, espancada e levada a uma delegacia por supostamente estar quebrando regras islâmicas com relação ao uso do véu sobre a cabeça. Pouco depois, estava morta. Oficialmente, sofreu um ataque cardíaco. A violência inadmissível provocou manifestações pelo Irã e fora dele, com centenas de pessoas feridas e dezenas mortas, no rastro das queimas de lenços postadas em vídeos, apesar da censura governamental às redes sociais. O véu islâmico parece ter sido o início da tragédia, ainda nebulosa, mas o Alcorão não determina especificamente que precise ser usado — a não ser durante orações — ou a maneira de ser colocado.

Reprodução/Foto-RN176 PROTESTOS No Irã, manifestações contra a morte de Mahsa Amini ganharam força pelas redes sociais (Crédito:Hawar News Agency via AP)

Separando o corpo da mulher do criador, o véu sobre a cabeça sintoniza seu pensamento com o divino e é usado em orações por devoção a Deus, ainda que ela não o use no dia a dia. A explicação é da antropóloga muçulmana Francirosy Campos Barbosa, para quem o mais comum é que também se use fora de casa, como demonstração de recato. “O importante é entender que o véu islâmico, ou lenço, representa todo um comportamento religioso. É muito mais que um pano na cabeça”, diz a professora da USP-Ribeirão Preto. “E no Alcorão não existe qualquer justificativa de violência contra a mulher, como punição, caso não o use”. Para ela, a onda da queima de lenços não se dá contra a religião, mas contra a violência e a morte de Mahsa.

RN176 Imagens revoltantes: as fotos de Mahsa Amini correram pelas redes sociais e provocaram protestos – Twitter/Reprodução

“O Alcorão versa apenas sobre partes do corpo, porque a mulher não deve mostrar seus atrativos além de rosto, mãos e pés, que aparecem naturalmente, como está no texto sagrado. Tipos de lenço, tecidos, cores ou outras características não são especificados. Dependem do entendimento dos sábios, dos eruditos muçulmanos, e da cultura local”, diz, destacando que cada país islâmico adota uma jurisprudência específica. “São cinco as predominantes: quatro sunitas e uma xiita.

Veja como era o Irã nas décadas 60 e 70:

RN176; –  Como era a vida das mulheres no Irã antes da Revolução Islâmica

E não existe jurisprudência de punir. O Islã dá direitos totais às mulheres. O porém está na maneira como são administrados — e, no caso, por homens. Quando fui ao Irã, em 2015, muitas mulheres usavam apenas o lenço jogado sobre os cabelos. Escondê-los totalmente pode ser uma lei recentemente endurecida. O que o Irã não pode é silenciar que uma jovem morreu. Terá de averiguar, com seriedade, de acordo com a lei islâmica.”

Reprodução/Foto-RN176 BURKA Mulheres de aldeias isoladas adotaram o modelo como forma de sair de casa sozinhas (Crédito:Istockphoto)

Se em alguns lugares, como segue a professora, as muçulmanas apenas jogam o véu sobre o cabelo solto, em outros amarram sem deixar pontas aparecendo, ou prendem com alfinetes. São retângulos ou quadrados, em chiffon, malha, algodão, seda, coloridos, bordados, mais simples ou de grife.

O rosto pode aparecer, apenas os olhos, ou nem eles. Não há restrições quanto aos cabelos curtos ou longos, pintados ou não. Véus são combinados com vestidos mais longos e soltos, blusas de mangas compridas e, cobrindo quadris, calças largas.

Reprodução/Foto-RN176 As mais procurada no Oriente Médio

“O hijab, véu mais comum, já é uma cobertura suficiente. O niqab só deixa os olhos à mostra e são usados por quem quer ser vista como mais religiosa. A shayla, mais comprida e solta, com o cabelo aparecendo, está mais entre paquistanesas. O xador, uma capa preta, é usado pelas xiitas”, continua Francirosy – ela frisa que o termo não deve, de forma alguma, ser vista como sinônimo de radical ou extremista. “A burka surgiu em aldeias montanhosas, afegãs e paquistanesas. Foi a maneira que as mulheres encontraram para transitar sozinhas.”

Pensar em “salvar” muçulmanas do uso dos véus, como muitas vezes se faz no Ocidente, é um equívoco, destaca a professora: “Existe quem queira usar e há quem não queira, fora das orações. A violência contra mulheres não está demarcada no Alcorão e é preciso, sim, compreender que as muçulmanas têm suas próprias lutas, assim como ferramentas próprias a serem usadas. E combater preconceitos, como a xenofobia e a islamofobia”.