Voo TWA85: ‘O mais longo e espetacular sequestro de avião do mundo’

ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 05/01/2020 07h57                                                                               Por Roland Hughes – BBC News

Há 50 anos, Raffaele Minichiello desviou o voo da TWA para um destino transcontinental e causou comoção. Mas ele conseguiria obter o perdão dos passageiros pelo que fez?

No auge da série de sequestros de aviões dos anos 1960, havia em média um deles a cada seis dias nos Estados Unidos. Há 50 anos, Raffaele Minichiello foi o responsável pelo “mais longo e espetacular” caso, como a imprensa descreveu na época. Mas ele conseguiria obter o perdão dos passageiros pelo que fez?

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Reprodução/Foto-RN176  Voo TWA85 foi sequestrado em 1969 Foto: Bangor Daily News / BBC News Brasil Foto: BBC News Brasil

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21 de agosto de 1962

Debaixo das colinas do sul da Itália, um pouco a nordeste de Nápoles, uma falha se rompeu e a terra começou a tremer. Aqueles que viviam na superfície, em uma das partes mais propensas a terremotos da Europa, estavam acostumados com isso. O terremoto de magnitude 6,1 no início da noite foi suficiente para assustar todos, mas foram os dois tremores secundários poderosos que causaram mais danos.

A 20 quilômetros do epicentro e a algumas centenas de metros ao norte, morava a família Minichiello, incluindo Raffaele, de 12 anos. Quando o terceiro terremoto chegou ao fim, o vilarejo de Melito Irpino havia se tornado inabitável. A família Minichiello ficou sem nada, Raffaele lembraria mais tarde, e nenhuma autoridade ofereceu ajuda.

O dano foi tamanho que quase todo o vilarejo foi evacuado, arrasado e reconstruído. Muitas famílias voltariam a morar ali, mas os Minichiellos decidiram se mudar para os EUA em busca de uma vida melhor.

No novo país, no entanto, o que Raffaele Minichiello encontrou foi guerra, trauma e notoriedade.

01h30; 31 de outubro de 1969

Vestido com uma roupa com estampa militar, Raffaele Minichiello embarcou no avião com uma passagem de US$ 15,50 de Los Angeles para San Francisco na mão.

Era a última parada do voo 85 da companhia aérea Trans World Airlines pelos EUA, que havia começado várias horas antes em Baltimore, passando por St Louis e Kansas City.

A tripulação de três integrantes no cockpit era auxiliada por quatro jovens comissárias de bordo, a maioria das quais novatas na função. Charlene Delmonico, de 23 anos, era a mais experiente delas. Natural do estado americano do Missouri, ela trabalhava na companhia aérea havia três anos. Delmonico trocou de turno para voar no TWA85, pois queria folgar na noite de Halloween.

Antes de sair de Kansas City, o capitão Donald Cook, de 31 anos, havia informado as comissárias de bordo sobre uma mudança na prática habitual: se elas quisessem entrar no cockpit, não deveriam bater, mas tocar uma campainha do lado de fora da porta.

O voo aterrissou em Los Angeles tarde da noite. Os passageiros desembarcaram e outros, com os rostos visivelmente cansados, juntaram-se ao curto voo noturno para San Francisco. As luzes no interior da aeronave permaneceram apagadas, para que aqueles que ficaram a bordo pudessem continuar dormindo. As comissárias de bordo conferiram os bilhetes dos passageiros enquanto eles embarcavam silenciosamente. Um deles, no entanto, chamou a atenção de Delmonico. Ela fixou o olhar em sua bagagem de mão.

O jovem bronzeado com roupa de estampa militar e cabelos castanhos ondulados amassados estava nervoso, mas educado, ao embarcar. Um objeto fino se projetava de sua mochila.

Delmonico foi para a primeira classe, na qual suas colegas Tanya Novacoff e Roberta Johnson guiavam os passageiros para os seus assentos. “O que era aquela coisa que estava saindo da mochila do jovem?”, Delmonico perguntou a elas. A resposta — uma vara de pescar — a deixou mais calma e ela acabou voltando para a parte de trás do avião.

Reprodução/Foto-RN176  TWA85, um dos mais notoriamente barulhentos da frota dos Boeing 707, durante sequestro Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O voo estava praticamente vazio. Com apenas 40 passageiros a bordo, havia espaço para todos se espalharem e encontrarem sua própria fileira para dormir.

Entre eles estavam os cinco integrantes do grupo pop Harpers Bizarre, exaustos depois de um estranho show em Pasadena naquela noite que havia sido temporariamente interrompido por um homem que gritava da sacada da casa de shows. Fazia dois anos desde o maior sucesso da banda, uma adaptação de The 59th Street Bridge Song(Feelin ‘Groovy) de Simon & Garfunkel, mas eles alcançariam o auge da fama apenas algumas horas depois.

Reprodução/Foto-RN176  Mapa do sequestro Foto: BBC News Brasil

O cantor-guitarrista Dick Scoppettone e o baterista John Petersen se acomodaram no lado esquerdo do avião e, relaxando em seus assentos, acenderam cigarros. Às 01h30 de sexta-feira, 31 de outubro de 1969, o voo 85 da TWA partiu de Los Angeles para San Francisco. Quinze minutos depois, o sequestro começou.

Qualquer pessoa que dormisse em paz teria seu descanso importunado na decolagem. Para aumentar a potência do avião, o Boeing 707 injetava água nos motores ao decolar, ganhando o apelido de “carroça de água” no setor aéreo. Dentro da aeronave, o efeito foi violento e barulhento, produzindo um estrondo profundo e ameaçador.

A escuridão caiu sobre o interior do avião quando as comissárias de bordo apagaram quase todas as luzes. Assim que o silêncio tomou conta da aeronave, Charlene Delmonico começou a arrumar a cozinha na parte de trás do avião com Tracey Coleman, de 21 anos. Formada em idiomas, ela havia começado a trabalhar na TWA apenas cinco meses antes.

Foi então que o passageiro nervoso com roupa de estampa camuflada entrou na cozinha e se posicionou ao lado delas. Ele tinha um fuzil M1 na mão. Delmonico o interpelou calmamente: “Você não deveria estar com isso aqui”. Sua reação foi entregar-lhe uma bala de 7,62 mm para provar que o fuzil estava carregado e ordenar que ela o levasse para o cockpit.

Reprodução/Foto-RN176  Charlene Delmonico (à dir.) fala com imprensa sobre como sequestro aconteceu, junto com Tanya Novacoff (à esq.) e Roberta Johnson (centro) Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Dick Scoppettone estava quase pegando no sono, mas a movimentação no corredor o despertou. Pelo canto do olho, viu Delmonico sendo seguida por um homem que apontava um fuzil para as costas dela. Seu colega de banda, John Petersen, virou-se para ele algumas fileiras na frente e o fitou com os olhos arregalados. “Isso está realmente acontecendo?”.

Na parte de trás do avião, um dos passageiros, Jim Findlay, levantou-se para confrontar Minichiello. O sequestrador se virou. Ele gritou para Delmonico: “Pare!”.

“Este homem é um soldado”, pensou Delmonico.

Com Findlay de volta a seu assento, Delmonico e Minichiello continuaram o caminho rumo à cabine. Ela afastou a cortina para entrar no compartimento de primeira classe. Suas pernas tremiam. Delmonico alertou as duas comissárias de bordo à sua frente: “Tem um homem atrás de mim com uma arma”. Rapidamente, as duas abriram caminho.

Alguns dos passageiros ouviram Minichiello gritar com Delmonico enquanto ele ficava cada vez mais agitado ao lado da porta da cabine. Na maioria das vezes, ele era educado, respeitoso e parecia, nas palavras dela, “um garoto bonito e bem-vestido”, mas agora ele parecia ter sucumbido à paranoia.

Delmonico lembrou-se das instruções do capitão: não bata para entrar, toque a campainha. Mas Minichiello, com medo de ser enganado, recusou-se a deixá-la fazer isso. Ela bateu em vez disso, e esperava que isso enviasse um sinal de alerta. A porta se abriu e Delmonico disse à tripulação que havia um homem com uma arma atrás dela. Minichiello entrou e apontou o rifle para cada um dos três homens dentro da cabine: o capitão Cook, o primeiro oficial Wenzel Williams e o engenheiro de voo Lloyd Hollrah.

Minichiello parecia bem treinado e bem armado, pensou Williams. Ele sabia o que queria da tripulação e estava determinado a obtê-lo. Depois que Delmonico saiu da cabine, Minichiello virou-se para a tripulação e disse em inglês com forte sotaque: “Vamos para Nova York”.

Reprodução/Foto-RN176  Agente especial do FBI Scott Werner com bala de fuzil entregue a Charlene Delmonico Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A visão incomum de um homem andando no avião com uma arma não passou despercebida pelos passageiros que ainda estavam acordados.

Todos os membros do Harpers Bizarre correram para se sentar um ao lado do outro em poucos segundos após o atirador passar. A estranha noite deles acabara de ficar mais estranha. Eles começaram a especular como o homem poderia ter conseguido embarcar no avião com um rifle. Aonde eles estavam indo? Hong Kong, talvez? Eles nunca haviam estado em Hong Kong, talvez fosse divertido.

Perto deles, estava Judi Provance. Aeromoça da TWA, ela estava de folga e voltava para casa em San Francisco depois de oito dias voando pela Ásia. Todos os anos, ela e a equipe da TWA passavam por um treinamento sobre como reagir em caso de emergências, incluindo sequestros. A principal lição que eles haviam aprendido era manter a calma. Outra era não se apaixonar pelo sequestrador — eles disseram que era fácil para sequestradores suscitar a simpatia da equipe.

Com voz baixa, Provance disse aos que estavam à sua volta que ela havia visto alguém andando pelo corredor com uma arma. Ela fora ensinada a não espalhar pânico e ajudar a controlar a situação. Jim Findlay, o homem que já havia tentado intervir, era um piloto da TWA de folga a bordo. Ele encontrou as malas do sequestrador e as vasculhou em busca de pistas sobre sua identidade. Também queria garantir que não houvesse mais armas dentro do avião. Só mais tarde os passageiros encontraram carregadores de fuzil cheios de balas.

De repente, a voz do capitão Cook foi ouvida pelo alto-falante. “Temos um jovem muito nervoso aqui em cima e vamos levá-lo aonde ele quiser”.

À medida que o vôo se afastava cada vez mais de San Francisco, outras mensagens foram comunicadas aos passageiros ou começaram a se espalhar entre eles: eles estavam indo para a Itália, Denver, Cairo, Cuba. A tripulação dentro do cockpit temia por suas vidas, mas alguns dos passageiros tinham a sensação de que participavam de uma aventura. Uma aventura estranha, mas uma aventura.

Era natural que as pessoas a bordo do TWA85 pensassem que poderiam estar indo para Cuba. Há muito tempo o país era o destino preferido dos sequestradores.

Desde o início da década de 1960, vários americanos desiludidos com sua terra natal e encantados com a promessa de um ideal comunista fugiram para Cuba após a revolução comandada por Fidel Castro. Como os aviões americanos normalmente não voavam para a ilha, o sequestro deu às pessoas meios para chegar lá. E, ao aceitar sequestradores dos EUA, Castro poderia constranger e irritar seu arqui-inimigo, enquanto exigia dinheiro para devolver as aeronaves.

Um período de três meses em 1961 abriu a temporada de sequestros. Em 1º de maio, Antulio Ramirez Ortiz embarcou em um voo da National Airlines de Miami com um nome falso e assumiu o controle do avião ameaçando o capitão com uma faca. Ele exigiu que fosse levado de avião para Cuba, onde queria avisar Castro de uma conspiração para matá-lo, fruto de sua própria imaginação.

Mais dois sequestros ocorreram nos dois meses seguintes e, nos 11 anos subsequentes, 159 voos comerciais foram sequestrados nos Estados Unidos, escreve Brendan I. Koerner em seu livro The Skies Belong To Us: Love and Terror in the Golden Age of Hijacking (Os Céus Nos Pertencem: Amor e Terror na Era de Ouro dos Sequestros, em tradução livre).

Os sequestros que terminaram em Cuba eram tão comuns, diz Koerner, que em determinado momento os capitães das companhias aéreas americanas receberam mapas do Caribe e guias em espanhol, caso tivessem que voar inesperadamente para Havana. Foi estabelecida uma linha telefônica direta entre os controladores de tráfego aéreo da Flórida e de Cuba. Houve até quem propusesse construir uma réplica do aeroporto de Havana na Flórida, com o objetivo de enganar os sequestradores.

Os sequestros aconteciam por falta de segurança nos aeroportos. Diferentemente de hoje em dia, não era necessário verificar a bagagem dos passageiros, porque nunca nenhum problema desse tipo havia sido registrado anteriormente. De fato, durante anos, o setor de companhias aéreas resistiu à implantação de sistemas de segurança porque temia que isso estragasse a experiência dos passageiros e atrasasse o processo de embarque.

“Vivíamos em um mundo diferente”, lembra à BBC Jon Proctor, que trabalhou no Aeroporto Internacional de Los Angeles na década de 1960. “As pessoas não explodiam aviões. No máximo, elas poderiam sequestrar um avião e querer ir para Cuba, mas não explodir um avião”.

Mais tarde, a imprensa noticiaria que Raffaele Minichiello havia desmontado seu rifle e embarcado com ele dentro de um tubo, antes de reconstruir a arma no banheiro do avião. Levá-lo a bordo teria sido “muito fácil”, diz Proctor. Os funcionários do aeroporto pesariam apenas sua mochila e não a revistariam.

Quando o TWA85 foi sequestrado, os EUA já haviam registrado 54 sequestros apenas em 1969, informou a agência de notícias Associated Press na época, a uma taxa de um a cada seis dias. Mas ninguém jamais havia sequestrado um avião nos EUA e levado para outro continente.

A tripulação estava recebendo mensagens contraditórias de seu passageiro nervoso: ele queria ir para Nova York, ou talvez para Roma. Se o destino deles fosse Nova York, isso seria um problema: eles tinham combustível suficiente para voar apenas para San Francisco. Ou seja, teriam que parar para reabastecer. Por outro lado, se fossem para Roma, haveria um obstáculo ainda maior: ninguém a bordo estava qualificado para voar internacionalmente.

Finalmente, o capitão Cook foi autorizado a conversar com os passageiros. “Se você tiver feito planos em San Francisco”, disse ele, “mude seus planos. Porque você está indo para Nova York.”

Após certa negociação, Minichiello concordou em deixar o capitão pousar em Denver para reabastecer e chegar à Costa Leste. Enquanto estava no Colorado, Cook alertou pela primeira vez o controle de tráfego aéreo de que o avião havia sido sequestrado.

Os planos logo mudaram: Minichiello deixaria os outros 39 passageiros descerem em Denver, mas ele insistiu que uma das comissárias permanecesse a bordo. Um pequeno debate se seguiu sobre quem deveria ficar. A preferência do sequestrador era por Delmonico, levada por ele à mão armada ao cockpit. Mas Cook queria Roberta Johnson, pois, das quatro comissárias, era ela quem ele conhecia melhor.

Quando Delmonico começou a listar todos os passageiros a bordo, Tracey Coleman foi ao cockpit levando café para a tripulação. Quando voltou, disse a Delmonico: “Eu vou.” Coleman tinha um namorado em Nova York, disse, e poderia ir visitá-lo. Mas Delmonico sabia que Nova York não seria o destino final. “Você não vai ficar em Nova York”, disse ela a Coleman. “Ele não pode ficar lá, ele será preso se chegar lá. Ele está indo para outro lugar — não sei para onde, mas ele está indo para outro lugar.”

Coleman, em entrevista à revista TWA Skyliner após o sequestro, disse que sabia o que estava em jogo. “Não foi porque eu queria ir junto”, disse ela. “Mas havia o temor de que, se uma das aeromoças não permanecesse a bordo, ele não deixaria os passageiros desembarcar em Denver.”

Minichiello exigiu que as luzes do Aeroporto Internacional Stapleton, em Denver, fossem apagadas quando o avião pousasse. Ele não queria surpresas e prometeu liberar os passageiros apenas se não houvesse problemas.

Com os nervos aparentemente acalmados, o sequestrador se mostrou inesperadamente condescendente. Enquanto estava desembarcando, Jim Findlay, o piloto de folga da TWA, percebeu que havia deixado para trás uma roupa de Halloween que havia comprado em Hong Kong. Ele perguntou a Minichiello se poderia voltar para o fundo do avião para pegá-la. O sequestrador respondeu educadamente: “Claro”.

Enquanto os passageiros saíam do avião em meio ao frio e à neblina, com o nascer do sol dali a duas horas, foram recebidos por um agente do FBI carrancudo em um sobretudo. O alívio entre os que tinham permissão para sair era claro. Todos foram conduzidos por um corredor escuro através do terminal. No final dele, havia uma sala cheia de agentes do FBI, que correram para o aeroporto em pouco tempo e aguardavam declarações dos 39 passageiros e das três comissárias de bordo.

Reprodução/Foto-RN176  Harpers Bizarre, após sequestro no aeroporto de Denver, disseram que foi a melhor publicidade que tiveram Foto: Denver Post/Getty Images / BBC News Brasil

Os integrantes da Harpers Bizarre lembraram-se do que seu empresário lhes dissera uma vez: se eles estivessem envolvidos em algum problema, qualquer coisa, deveriam ligar para ele primeiro, mesmo antes de chegarem a uma delegacia ou hospital. Assim que chegaram ao terminal, cumpriram a ordem, embora ele estivesse provavelmente dormindo.

A tática valeu a pena. Quando terminaram de prestar depoimento às autoridades, os músicos entraram em outra sala e foram recebidos pelo flash das câmeras dos fotógrafos. Repórteres gritavam o nome da banda e telefones tocavam enquanto os meios de comunicação nos Estados Unidos esperavam ouvir sua versão da história. “Foi a melhor publicidade que já tivemos, sem comparação”, diz Dick Scoppettone à BBC.

Os fotógrafos reunidos retrataram passageiros cansados, estirados contra as paredes. Outros sorriram, confusos, enquanto contavam o que havia acontecido. As três comissárias de bordo prestaram depoimento ao FBI, a polícia federal americana, e Charlene Delmonico entregou às autoridades 13 páginas manuscritas.

Após um dia de entrevistas, todas as comissárias de bordo chegaram a Kansas City no final da noite, enquanto os canais de TV mantinham os espectadores atualizados à medida que o improvável sequestro continuava.

Delmonico chegou em casa depois de mais de um dia sem dormir. No final da noite, o telefone tocou. Era o FBI: eles poderiam vir vê-la? Os agentes chegaram às 23h e entregaram uma foto a ela. Era a imagem de Raffaele Minichiello. “Sim, é ele”, disse ela.

Era um rosto que ela encontraria novamente quase 40 anos depois.

Reprodução/Foto-RN176  Mapa do sequestro Foto: BBC News Brasil

O voo de três horas de Denver transcorreu pacificamente. Minichiello, estirado na primeira classe com a arma ao seu lado, havia se acalmado. Ele serviu a si mesmo um coquetel incomum feito a partir de duas garrafas em miniatura — uísque e gim do Canadian Club. Apenas cinco pessoas permaneceram a bordo do TWA85 — o capitão Cook, o primeiro oficial Wenzel Williams, o engenheiro de voo Lloyd Hollrah, a comissária de bordo Tracey Coleman e o próprio sequestrador.

O avião aterrissou no aeroporto internacional John F. Kennedy no final da manhã e parou o mais longe possível dos terminais. A ordem do cockpit, como em Denver, era para o menor número possível de pessoas se aproximar do avião. Mas o FBI estava pronto e queria parar o sequestrador antes que ele abrisse um precedente perigoso e fizesse um voo para outro continente. Cerca de 100 agentes aguardavam o TWA85, muitos deles disfarçados de mecânicos, à espera de uma oportunidade para invadir a aeronave.

Poucos minutos após o pouso, quando o reabastecimento estava prestes a ocorrer, o FBI começou a se aproximar do avião. Pela janela da cabine, Cook conversou com um agente que queria que Minichiello, relutante, se aproximasse da janela para falar com eles.

“Raffaele estava andando pelos corredores para ter certeza de que eles (FBI) não estavam tentando entrar no avião”, disse Wenzel Williams à BBC 50 anos depois. “Ele sentiu que seria atingido se fosse em direção à janela.”

O capitão, de olho no passageiro, alertou os agentes para ficarem longe do avião. Logo depois, um tiro ecoou.

Reprodução/Foto-RN176  TWA85 pronto para decolar rumo a Roma, com seu novo piloto no comando Foto: Bangor Daily News / BBC News Brasil

A versão mais aceita dos eventos agora é que Minichiello não pretendia atirar. Agitado, do lado de fora da porta da cabine, acredita-se que ele tocou suavemente o gatilho do rifle com o dedo. A bala perfurou o teto e resvalou em um tanque de oxigênio, mas não chegou a penetrá-lo, nem mesmo afetou a fuselagem do avião. Se tivesse danificado a fuselagem, o avião não seria capaz de voar. Se tivesse perfurado o tanque de oxigênio e causado uma explosão, talvez não houvesse um avião ou tripulação para contar esta história.

Embora tenha aparentemente sido disparado por acidente, o tiro causou arrepios na tripulação e eles se deram conta de que suas vidas corriam perigo. O capitão Cook — que tinha certeza de que o rifle havia sido disparado de propósito — gritou com os agentes pela janela, criticando-os e dizendo que o avião estava saindo imediatamente, sem reabastecer.

Dois capitães da TWA, com 24 anos de experiência, autorizados a voar internacionalmente, Billy Williams e Richard Hastings, abriram caminho entre os agentes do FBI e entraram no avião. O restante das pessoas ficou a bordo.

“O plano do FBI foi criticado pois poderia causar a morte de toda a equipe”, disse Cook mais tarde ao New York Times.

“Ficamos seis horas com aquele garoto e vimos ele passar de um maníaco violento a um jovem bastante complacente e inteligente, com senso de humor, e esses idiotas … irresponsáveis, tomaram a decisão, por sua própria conta, sobre como lidariam com esse garoto desprovidos de qualquer informação, e a boa fé que construímos por quase seis horas foi completamente destruída.”

Os dois novos pilotos, que não estavam com disposição para o humor do sequestrador, assumiram o comando do avião. Minichiello ordenou que todos ficassem dentro do cockpit com as mãos na cabeça.

O avião decolou rapidamente, sem combustível a bordo para chegar ao destino pretendido: Roma.

Reprodução/Foto-RN176  Mapa do sequestro Foto: BBC News Brasil

Vinte minutos depois que o avião saiu de Nova York com uma bala alojada no teto, a tensão a bordo diminuiu, graças ao fato de que Cook convenceu Minichiello de que a tripulação nada tinha nada a ver com a confusão do aeroporto Kennedy.

O ocorrido em Nova York fez com que o avião não pudesse reabastecer; assim, em uma hora, o TWA85 pousou no nordeste dos EUA, em Bangor, no estado do Maine, onde foi injetado combustível suficiente para atravessar o Atlântico. A essa altura, no início da tarde, a história do sequestro e do drama em Nova York havia conquistado toda a atenção da imprensa americana. Fotógrafos e repórteres compareceram em massa ao terminal do aeroporto de Bangor.

Cerca de 75 policiais garantiram que a imprensa ficasse o mais longe possível do avião, caso o sequestrador fosse novamente provocado. Centenas de pessoas foram ao aeroporto para acompanhar a ação, mas foram mantidas a 800 metros do terminal. Do avião, o sequestrador viu duas pessoas assistindo de um prédio próximo. Cook, ansioso por sair, falou com a torre de controle: “É melhor vocês se apressarem. Ele diz que vai começar a atirar naquele prédio a menos que eles se mexam”. Os dois homens saíram rapidamente.

Reprodução/Foto-RN176  Mapa do sequestro Foto: BBC News Brasil

A bordo, enquanto o avião se dirigia para o espaço aéreo internacional, um sentimento de solidariedade começou a florescer entre aqueles que estavam juntos havia mais de nove horas. Mas, no fundo, mesmo enquanto tentavam manter o sequestrador feliz, a equipe continuou a temer por suas vidas.

Com os novos pilotos a bordo, Cook foi sentar-se com Minichiello na primeira classe, onde compartilharam histórias. Cook falou de seu tempo como controlador de tráfego aéreo na Força Aérea dos EUA. O fuzil estava entre eles, mas em nenhum momento a tripulação tentou pegá-lo, principalmente por se preocupar com a reação do sequestrador.

Minichiello perguntou repetidamente a Cook se ele era casado. Ele respondeu que sim, apesar de ser, na verdade, solteiro. “Achei uma resposta mais sábia”, disse Cook ao New York Times depois do fim do sequestro. Ele presumiu que um homem nervoso com uma arma teria menos probabilidade de ferir quem fosse casado. “Ele perguntou quantos filhos eu tinha e eu disse um. Então, perguntou sobre os outros integrantes da tripulação e eu disse: ‘Sim, todos eles são casados.'” De fato, apenas um deles era realmente casado.

Tracey Coleman também passou um tempo conversando com Minichiello durante a viagem transatlântica, a primeira vez que deixou os Estados Unidos ou voou por mais de quatro horas. Ele ensinou-lhe jogos de cartas, incluindo paciência, e era “um sujeito muito fácil de conversar”, lembraria a comissária posteriormente. Minichiello falou sobre a mudança de sua família para os EUA e, curiosamente, disse que “teve um pequeno problema com as Forças Armadas depois de voltar aos Estados Unidos e só queria voltar para casa na Itália”, disse Coleman posteriormente a uma revista do setor aéreo.

Ela dormiu um pouco durante o voo de seis horas de Bangor para Shannon, na costa oeste da Irlanda, onde o TWA85 reabasteceu mais uma vez no meio da noite. Poucos outros a bordo conseguiram dormir. “Estávamos muito agitados para isso”, lembrou Wenzel Williams. A única comida a bordo era um punhado de cupcakes restantes do voo original de Baltimore para Los Angeles. “A comida não era exatamente um problema”, disse Williams à BBC. “Ter uma arma apontada para nós durante boa parte do tempo afastou a maioria dos outros problemas”.

Quando o TWA85 cruzou o fuso horário ao se aproximar da Irlanda e 31 de outubro se tornou 1º de novembro, Minichiello fez 20 anos. Ninguém comemorou.

Meia hora após o desembarque na Irlanda, o TWA85 partiu novamente, no trecho final de sua jornada de 11 mil km até Roma.

Reprodução/Foto-RN176  Mapa do sequestro Foto: BBC News Brasil

O TWA85 circulou o aeroporto de Roma Fiumicino de manhã cedo. Minichiello tinha mais uma exigência: o avião deveria ser estacionado longe do terminal e ele seria recebido por um policial desarmado. O sequestro estava chegando ao fim, 18 horas e meia depois de ter começado sobre os céus do centro da Califórnia. Foi, segundo o New York Times na época, “o sequestro mais longo e espetacular do mundo”.

Nos últimos minutos do voo, segundo Williams, o sequestrador se ofereceu para levar a tripulação de carro para um hotel depois de pousar, uma oferta que todos recusaram educadamente. Minichiello também temia que a tripulação seria punida por não ter roubado sua arma quando tiveram a oportunidade. “Eu dei a vocês um monte de problemas”, disse ele a Cook. “Está tudo bem”, respondeu o capitão. “Não levamos isso para o lado pessoal.”

No aeroporto, pouco depois das 5h, um Alfa Romeo solitário se aproximou do avião. Dele, emergiu Pietro Guli, um oficial adjunto da alfândega que se ofereceu para encontrar o sequestrador. Ele subiu os degraus do avião com as mãos levantadas e Minichiello surgiu para encontrá-lo.

“Até logo, Don”, disse o sequestrador ao capitão quando ele saiu. “Me desculpe, eu lhe causei todo esse problema.” Minichiello anotou o endereço de Cook em Kansas City para que mais tarde ele pudesse escrever para ele e explicar o que havia acontecido depois que eles se separassem.

Os dois homens desceram os degraus em direção ao carro, Minichiello ainda segurava o rifle e as seis pessoas a bordo sentiram “alívio total”, segundo conta o primeiro oficial Wenzel Williams. Eles estavam livres novamente. Mas todos esperavam que o próximo estágio do sequestro terminasse em segurança, tanto para Minichiello quanto para seu novo refém.

Depois de Los Angeles, Denver, Nova York, Bangor, Shannon e Roma, havia apenas um destino agora. “Leve-me para Nápoles”, ordenou Minichiello a Pietro Guli. Ele estava indo para casa.

Quatro carros da polícia seguiam o Alfa Romeo e as vozes dos policiais ecoavam pelo rádio do refém. Minichiello, sentado no banco de trás, desligou o transmissor e deu instruções ao refém sobre onde ir.

Reprodução/Foto-RN176  Polícia fez buscas pelos arredores de Roma à procura de Raffaele Minichiello, sem sucesso Foto: AFP/Getty Images / BBC News Brasil

Na zona rural a cerca de 10 quilômetros do centro de Roma, tendo de certa forma evadido os carros que o perseguiam, o Alfa Romeo percorreu estradas que se tornaram cada vez mais estreitas. Finalmente, chegou a um beco sem saída e os dois homens saíram do carro. Percebendo que tinha poucas opções, Minichiello correu em pânico.

Vinte e três horas depois que o TWA85 deixou Los Angeles, a jornada de Minichiello chegou ao fim. Só o fez por causa da publicidade gerada pelo sequestro. Durante cinco horas nas colinas ao redor de Roma, centenas de policiais, alguns com cães e helicópteros, lideraram a busca pelo sequestrador. Mas no final, ele foi encontrado por um padre.

Sábado, 1º de novembro, era o dia de Todos os Santos, e a igreja Santuário do Amor Divino estava cheia para a missa da manhã. Entre a congregação bem vestida, destacava-se o jovem de colete e camiseta. Minichiello procurou abrigo na igreja depois de jogar fora suas roupas com estampa militar e esconder sua arma em um celeiro. Mas seu rosto agora era famoso e o pároco Don Pasquale Silla o reconheceu.

Quando a polícia finalmente cercou Minichiello do lado de fora da igreja, ele expressou perplexidade — interpretada pelos repórteres como a arrogância de um jovem criminoso — por seus compatriotas quererem detê-lo. “Paisà [meu povo], por que você está me prendendo?”, perguntou ele.

Reprodução/Foto-RN176  Minichiello preso em Roma: “Que avião? Não sei do que você está falando” Foto: AFP/Getty Images / BBC News Brasil

Ele adotou o mesmo tom horas depois, enquanto falava com repórteres, com as mãos livres de algemas, após um breve interrogatório em uma delegacia de Roma. “Por que você fez isso?”, perguntou um repórter. “Por que fiz isso?”, respondeu. “Não sei.” Quando outro lhe perguntou sobre o avião sequestrado, ele respondeu em tom perplexo: “De que avião? Não sei do que você está falando”.

Mas em outra entrevista, ele revelaria os reais motivos do sequestro.

Quando as notícias da prisão de Minichiello se espalharam pelo mundo horas depois naquele dia, Otis Turner sentou-se para tomar café da manhã na bagunça da caserna da Marinha na Califórnia.

A televisão no canto transmitia os detalhes do ousado sequestro e da perseguição no interior da Itália. “Então, eles mostraram a foto de Raffaele”, diz Turner à BBC. “Fiquei com a cara no chão, definitivamente com a cara no chão.”

Os dois homens haviam servido no mesmo pelotão no Vietnã. “Fiquei confuso no começo”, conta Turner, “mas quando realmente parei para pensar, sabia que ele tinha alguns problemas e tudo se encaixava”.

Quando o sequestro aconteceu, já haviam se passado quatro anos e meio desde que as forças de combate americanas chegaram ao Vietnã. A queda de Saigon só viria cinco anos depois. Os EUA deixariam o Vietnã tendo fracassado em sua missão. Mais de 58 mil militares americanos e milhões de vietnamitas — combatentes e civis — morreram.

A oposição da população dos EUA à guerra estava no auge no final de 1969. Estima-se que 2 milhões de americanos tenham participado da Moratória para Acabar com a Guerra no Vietnã — registrada como a maior demonstração da história americana — duas semanas antes do sequestro.

O sorteio que recrutaria jovens americanos para lutar só aconteceria um mês depois, mas muitos milhares de jovens já haviam se voluntariado, acreditando que a causa — combater os comunistas do Vietnã do Norte — era válida. Raffaele Minichiello foi um dos que se ofereceram.

Reprodução/Foto-RN176  Raffaele Minichiello no Vietnã Foto: Raffaele Minichiello / BBC News Brasil

Em maio de 1967, o jovem de 17 anos deixou sua casa em Seattle, para onde ele e sua família haviam se mudado após o terremoto em seu vilarejo natal na Itália, em 1962. Ele viajou para San Diego para se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais e, para aqueles que o conheciam — um pouco teimoso, um pouco entusiasmado —, sua iniciativa não foi uma surpresa.

Minichiello mal falava inglês e foi alvo de chacota de seus colegas de classe por seu sotaque napolitano, antes de abandonar completamente a escola. Isso acabou com suas ambições de ser piloto comercial. Mas Minichiello se orgulhava de seu país adotivo e estava disposto a lutar por ele na esperança de se naturalizar americano.

Otis Turner chegou ao Vietnã mais ou menos ao mesmo tempo que Minichiello e serviu em diferentes esquadrões no mesmo pelotão da Marinha. Ambos operavam na linha de frente.

“Todo mundo vai lhe dizer que tivemos o trabalho mais difícil do Corpo de Fuzileiros Navais”, diz Turner, que agora mora em Iowa. “Fazia 49° C e chovia bastante. Foi terrível.”

Quando revisita seu passado, Turner diz ter vergonha do que os soldados foram obrigados a fazer e como consentiram com tudo. A missão deles era brutalmente simples. “Desde o momento em que ingressamos no Corpo de Fuzileiros Navais, estávamos basicamente matando, matando, matando”, diz ele. “Isso é tudo o que eles queriam que fizéssemos. Eles introjetaram isso em nós desde o começo.”

Como fuzileiro, Minichiello foi arrastado para confrontos que resultaram na morte de amigos próximos e que também lhe permitiram salvar outros que corriam perigo. Ele foi premiado com a Cruz da Galanteria, honraria concedida pelo governo do Vietnã do Sul àqueles que demonstraram conduta heroica na guerra.

Neste sentido, voltar à rotina nos EUA mostrou-se impossível. Turner diz que nenhum dos soldados teve ajuda psicológica para “pensar no que havíamos feito”.

“Havia muitas pessoas doentes, pessoas confusas. Raffaele estava em algum desses estados. Todos nós ficamos confusos quando deixamos o Vietnã.”

Turner disse que a maioria dos integrantes de seu pelotão e do de Minichiello — incluindo ele próprio — foram diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). O Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA estima que até 30% de todos os que serviram no Vietnã sofreram TEPT em algum momento de suas vidas — cerca de 810 mil pessoas.

Mas Raffaele Minichiello só seria diagnosticado em 2008.

Encontrado por repórteres perto de Nápoles, o pai de Minichiello — que já estava sofrendo de câncer terminal e havia retornado à Itália — soube imediatamente o motivo pelo qual seu filho sequestrou o avião. “A guerra deve ter provocado um estado de choque em sua mente”, disse Luigi Minichiello. “Antes disso, ele era uma pessoa sã.”. Ele prometeu repreender o filho quando o visse novamente.

Reprodução/Foto-RN176 Maria Minichiello, mãe de Raffaele, chora do lado de fora do tribunal em Roma, para onde viajou dos EUA

Outra razão para o sequestro logo emergiu. Enquanto estava no Vietnã, Minichiello enviava dinheiro para um fundo de poupança dos fuzileiros navais. Ele havia coletado US$ 800, mas quando retornou à base em Camp Pendleton, Califórnia, percebeu que havia apenas US$ 600 em sua conta. O montante não era suficiente para pagar a passagem para visitar seu pai doente na Itália.

Minichiello compartilhou suas preocupações com seus superiores e insistiu em receber os US$ 200 que achava que lhe eram devidos. Seus superiores não lhe deram ouvidos e rejeitaram a reclamação. E assim Minichiello decidiu fazer justiça com suas próprias mãos, embora desajeitadamente. Uma noite, ele invadiu a loja na base para roubar US$ 200 em mercadorias. Mas, ironia do destino, ele fez isso depois de beber oito cervejas e adormeceu dentro da loja. Acabou flagrado na manhã seguinte.

No dia anterior ao sequestro do TWA85, ele deveria comparecer diante de uma corte marcial em Camp Pendleton, mas, temendo a prisão, decidiu viajar para Los Angeles. Levou consigo um fuzil chinês que havia registrado como troféu de guerra no Vietnã.

Contra todas as probabilidades, Minichiello se tornou um herói popular na Itália, onde foi retratado não como um pistoleiro problemático que havia ameaçado um avião cheio de passageiros, mas como um garoto italiano que faria qualquer coisa para voltar à pátria. Ele foi a julgamento na Itália — as autoridades de lá insistiram nisso poucas horas após sua prisão — e não foi extraditado para os EUA, onde poderia ser condenado à pena de morte.

Em seu julgamento, seu advogado Giuseppe Sotgiu retratou Minichiello como vítima — a pobre vítima italiana — de uma guerra estrangeira desmedida. “Estou certo de que os juízes italianos entenderão e perdoarão um ato nascido de uma civilização de aviões e violência de guerra, uma civilização que subjugou esse camponês inculto.”

Ele foi processado na Itália apenas por crimes cometidos no espaço aéreo italiano e condenado a sete anos e meio de prisão. Essa sentença foi rapidamente reduzida em apelação e Minichiello foi libertado em 1º de maio de 1971.

Vestindo um terno marrom, o jovem de 21 anos saiu da prisão Carcere di Regina Coeli, perto do Vaticano, e se deparou com uma multidão de fotógrafos e cinegrafistas. Ocasionalmente intimidado pela atenção e abrindo um sorriso que passava do nervosismo à arrogância, ele parou para falar com os repórteres. “Você se arrepende do que fez?”, perguntou um jornalista. “Por que deveria?”, respondeu ele, sorrindo.

Mas a fama não duraria muito tempo. Uma carreira de modelo nu nunca decolou, e a promessa de um produtor de cinema de transformar Minichiello em uma estrela do Spaghetti Western nunca foi cumprida. Por anos, surgiram rumores de que o personagem John Rambo era baseado em Minichiello — afinal, Rambo era um veterano do Vietnã condecorado, mas incompreendido —, mas o homem que criou o Rambo descartou a correlação.

Nos anos seguintes à prisão, Minichiello se estabeleceu em Roma, onde trabalhou como barman. Ele se casou com a filha do dono do bar, Cinzia, com quem teve um filho. A certa altura, ele também se tornou dono de uma pizzaria chamada Hijacking (Sequestro, em inglês).

23 de Novembro de 1980

O terremoto que destruiu a cidade natal de Raffaele Minichiello em 1962 foi apenas um precursor. Dezoito anos depois, um novo tremor, de magnitude 6,9, atingiria o sul da Itália. Seu epicentro foi a apenas 32 quilômetros de distância do ocorrido em 1962.

Foi o terremoto mais poderoso que atingiu a Itália em 70 anos e causou enormes danos em toda a região de Irpinia. Mais de 4,5 mil pessoas morreram e 20 mil casas — muitas delas ainda com as estruturas abaladas após o terremoto de 1962 — acabaram destruídas.

Reprodução/Foto-RN176  Vilarejo foi destruído pelo terremoto de 1980, em Irpinia Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Após o ocorrido, grupos numerosos de italianos começaram a chegar à região leste de Nápoles para distribuir ajuda. Entre eles, estava Raffaele Minichiello.

O jovem de 31 anos ainda morava em Roma na época, mas se sentiu obrigado a fazer a viagem de quase 500 quilômetros para casa três vezes em apenas duas semanas para entregar ajuda humanitária. “Sei tudo sobre terremotos em Irpinia”, disse ele a um jornalista da revista americana People, em dezembro de 1980. “Foi ali que nasci e onde todos os meus problemas começaram”.

Sua desconfiança em relação à autoridade, fomentada durante seu tempo como fuzileiro naval, não desapareceu. “Desconfio de instituições, por isso ajudo pessoalmente”, disse ele. “Sei tudo sobre pessoas que não cumprem suas promessas.”

Minichiello foi reconhecido entre as ruínas cheias de neve de Irpinia, mas ele não gozava da mesma fama de quando o TWA85 pousou em Roma, 11 anos antes. Naquela época, sua imagem — cabelos escuros, cigarro na mão direita, sorriso casual no rosto — estampava as capas de revistas de todo o mundo.

Nas ruínas pós-terremoto, um Minichiello mais arrependido começou a surgir. “Agora sou muito diferente de quem eu era”, disse ele. “Sinto muito pelo que fiz com aquelas pessoas no avião”.

A redenção de Minichiello não ocorreu por causa do terremoto de Irpinia. E sua história poderia ter terminado de maneira muito diferente se seu plano para outro ataque tivesse sido concretizado, embora esse plano fosse muito mais capenga do que o sequestro que havia realizado.

Em fevereiro de 1985, Cinzia estava grávida do segundo filho do casal. Após ser internada no hospital em trabalho de parto, ela e seu filho recém-nascido morreram como resultado de negligência médica. Minichiello, irritado e decepcionado com as autoridades novamente, já tinha na cabeça o que faria. Ele tinha como alvo uma importante conferência médica fora de Roma e chamava a atenção para a negligência que custaram as vidas de sua esposa e filho. Ele conseguiu, por meio de um conhecido, adquirir armas com as quais pretendia levar a cabo sua vingança.

Enquanto pensava como concretizaria o plano, Minichiello fez amizade com um jovem colega, Tony, que se solidarizou com sua angústia. Tony o apresentou à Bíblia e leu passagens do livro sagrado em voz alta. Minichiello ouviu e, com o tempo, decidiu dedicar sua vida a Deus. Acabou desistindo do ataque.

Em 1999, Minichiello decidiu retornar aos Estados Unidos pela primeira vez desde o sequestro.

Ele soube no início daquele ano que não havia acusações criminais pendentes contra ele no país, mas sua decisão de fugir trouxe consequências. Como Minichiello tinha fugido de uma corte marcial, recebeu o que é conhecido como “uma dispensa não honrosa” dos fuzileiros navais. Seus ex-companheiros de pelotão vêm lutando para tentar transformá-la em uma dispensa comum, que possa refletir seu serviço no Vietnã, mas não tiveram êxito até hoje.

“Raffaele era um grande fuzileiro naval, um fuzileiro naval condecorado”, diz o companheiro de pelotão Otis Turner à BBC. “Ele sempre foi o primeiro da fila. Se voluntariava para tudo. Salvou vidas. O que ele fez por este país, seu papel no Vietnã … não podemos simplesmente jogar alguém assim para escanteio.”

Enquanto seu pelotão trabalhava para limpar seu nome, Minichiello pediu que eles o ajudassem em outra missão: encontrar aqueles que estavam a bordo do TWA85, para que ele pudesse se desculpar pessoalmente.

8 de Agosto de 2009

No verão de 2009, Charlene Delmonico já estava aposentada havia mais de oito anos, depois de trabalhar durante 35 anos como aeromoça na TWA. Um ano depois de se aposentar, em janeiro de 2001, a companhia aérea já não existia mais, após pedir falência e ser adquirida pela American Airlines.

Do nada, Delmonico recebeu um convite. Ela estaria disposta a encontrar o homem que outrora apontou uma arma para ela?

O convite veio de Otis Turner e de outros membros do pelotão de Raffaele. “Achei a ideia era meio louca”, disse Turner. “Mas pensei: por que não?”

A primeira reação de Delmonico ao convite foi de choque. O sequestro mudou sua vida completamente. Por que ela deveria encontrar o homem que outrora colocou uma arma nas costas dela? Sua segunda reação, como cristã que era, foi diferente. “Fiquei meio surpresa”, diz ela à BBC. “E tive uma sensação estranha. O que aconteceu foi muito assustador e estressante — me afetou muito”, acrescenta.

“Então pensei: somos ensinados a perdoar. Mas eu não sabia como reagiria.”

Em agosto de 2009, Delmonico viajou quase 250 quilômetros para Branson, no Missouri, onde Minichiello e seu ex-pelotão estavam realizando uma reunião. Lá, conheceu Wenzel Williams, o primeiro oficial da TWA85, a única pessoa a aceitar a oferta de encontrar Minichiello. O capitão Cook recusou, um gesto que magoou o sequestrador que acreditava ter desenvolvido um vínculo com o capitão, enquanto conversavam na primeira classe.

Numa sala lateral do Clarion Hotel, Williams e Delmonico estavam sentados em uma mesa redonda com os integrantes do pelotão, menos Minichiello. Os ex-soldados lhes apresentaram uma carta, expressando o que esperavam que fosse alcançado através da reunião. O apoio óbvio a Minichiello convenceu Delmonico que eles sentiam que era um homem pelo qual valia a pena lutar.

Depois de algum tempo, Minichiello entrou e sentou-se. A atmosfera permaneceu tensa por um tempo. Mas, à medida que mais perguntas fluíam, e Minichiello começou a explicar o que havia acontecido com ele, o grupo se aproximou.

Minichiello parecia diferente de Williams — menor, com voz mais suave, sobrecarregado por sua culpa ao reviver o seqüestro. Mas seu remorso soava sincero.

“De certa forma, consegui obter um desfecho para esta história, vi um ponto de vista diferente”, diz Delmonico. “Provavelmente senti pena dele. Achei ele muito educado. Mas ele sempre foi educado.”

Antes de saírem, Minichiello entregou a ambos uma cópia do Novo Testamento.

Dentro do livro, ele escreveu:

Agradeço seu perdão por minhas ações que te magoaram.

Por favor, aceite este livro, que mudou minha vida.

Deus te abençoe muito, Raffaele Minichiello.

No pé da página, acrescentou as palavras Lucas 23:34.

A passagem diz: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”.

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