As rochas que podem reescrever a história da chegada do homem às Américas

Em vez de entrarem por onde hoje é o Canadá e dali rumarem ao sul, cientistas acreditam que humanos realizaram um périplo pela costa do Pacífico para povoar o continente.

ROTANEWS176 E POR BBC BRASIL.COM 30/05/2018 15:31

Não é de hoje que muitos questionam a teoria mais consolidada para a chegada dos primeiros homens à América, aquela segundo a qual nossos ancestrais teriam vindo pelo Estreito de Bering, uma espécie de ponte natural surgida entre os territórios que hoje são o Alasca e o extremo leste da Rússia, de lá entrado no oeste do Canadá e, então, se espalhado pelo continente.

Reprodução/Foto-RN176 Cientistas foram a lugares remotos, como a ilha Suemez, no Alasca, para estudar formações rochosas Foto: Jason Briner / BBCBrasil.com

Uma equipe de geólogos analisou estruturas rochosas em quatro ilhas do arquipélago de Alexander, 320 quilômetros ao sul de Juneau, capital do Estado americano do Alasca, e em estudo publicado nesta quarta, demonstra que o caminho das primeiras populações América adentro foi pela costa – pelo menos 4 mil anos antes de a travessia por Bering ter se tornado viável.

“Nosso estudo fornece algumas das primeiras evidências geológicas de que uma rota costeira estava disponível para os primeiros humanos que colonizaram o Novo Mundo”, afirma a geóloga Alia Lesnek, pesquisadora da Universidade de Buffalo. “Havia uma rota costeira disponível. E a aparência deste terreno então recém-liberado de gelo deve ter estimulado as primeiras populações a migrarem para o sul.”

Essa pesquisa responde a uma questão levantada por estudo anterior. Em agosto de 2016, um grupo internacional de cientistas publicou uma descoberta que praticamente refutava a teoria de que os primeiros humanos haviam chegado pelo Estreito de Bering.

Isso porque essa rota, formada com o baixo nível do mar na Era do Gelo há cerca de 15 mil anos, só teria se tornado viável para um processo imigratório há 12,6 mil anos – quando, segundo esse estudo, um ecossistema com plantas e animais já havia tomado conta de tal “ponte”, fornecendo então alimentos para os humanos que vinham da Ásia para a América. Entretanto, a despeito dessa conclusão, há indícios de que os primeiros povos americanos já estavam por aqui há mais de 15 mil anos.

Reprodução/Foto-RN176  Vegetação densa, nevoeiro e terreno montanhoso dificultaram acesso a locais onde seria possível coletar amostras Foto: Jason Briner / BBCBrasil.com

Essa interrogação pode ser explicada pela geologia. É o que aponta o trabalho desenvolvido pelos cientistas de Buffalo.

“As pessoas são fascinadas por essas questões, querem saber de onde vieram os primeiros povos e como chegaram lá. Nossa pesquisa contribui para o debate sobre como os seres humanos colonizaram o planeta”, afirma Jason Briner, professor de geologia da Universidade de Buffalo.

A verdade está nas pedras

Para fazerem a pesquisa, cinco cientistas da Universidade de Buffalo e da Universidade de Dakota do Sul foram de helicóptero até as remotas ilhas. A primeira conclusão a que chegaram foi de que o arquipélago certamente tinha sido glacial, ou seja, coberto por gelo no passado.

De acordo com os geólogos, isso pode ser percebido porque as superfícies rochosas são lisas e riscadas – as ranhuras são resultado da fricção do gelo sobre as pedras. E justamente para identificar a época precisa em que o gelo recuou na região é que foi efetuada uma coleta de amostras de rochas das superfícies.

Para descobrir o período, os cientistas utilizaram um método chamado de “surface exposure dating”, que identifica justamente o tempo em que as amostras recebem radiação cósmica – quando cobertas pelo gelo, elas estavam protegidas de tais efeitos. Os resultados apontaram para 17 mil anos atrás. Ou seja: quatro mil anos antes do Estreito de Bering ter sido um trajeto viável, a costa do Pacífico já oferecia condições para uma migração ao sul.

Reprodução/Foto-RN176  A superfície da rocha é lisa e apresenta riscos deixados pelo movimento do gelo sobre ela Foto: Jason Briner / BBCBrasil.com

O interessante é que os cientistas observaram ainda que, de acordo com a geologia, essa rota costeira não foi simplesmente aberta na época – e permaneceu aberta assim. Mas foi um caminho que existiu somente naquele período, o degelo das rochas e o mar num nível ainda baixo em função da Era Glacial. O momento certo. A oportunidade para os primeiros americanos.

A descoberta recente de um esqueleto de foca-anelada em uma caverna da região, restos datados de 17 mil anos atrás, sugerem que o hoje arquipélago era um ponto de natureza efervescente.

Reprodução/Foto-RN176  Cientistas retiraram amostras de formações rochosas com face para o oceano Pacífico, como esta na ilha Dall… Foto: Charlotte Lindqvist / BBCBrasil.com

Reprodução/Foto-RN176 …e esta na ilha Suemez; análise mostrou que elas deixaram de ser protegidas pelo gelo há 17 mil anos Foto: Charlotte Lindqvist / BBCBrasil.com

Hipóteses

A teoria mais aceita da ocupação da América, via Estreito de Bering, foi proposta em 1590 pelo historiador e jesuíta espanhol José de Acosto (1540-1600), no livro História Natural e Moral das Índias , de 1590. Cientificamente, sua hipótese só passou a ser aceita entre os anos 1928 e 1937, após escavações arqueológicas no Novo México, nos Estados Unidos, terem encontrado artefatos semelhantes aos da região de Bering.

Há um consenso científico de que, durante a última Era Glacial, devido à grande quantidade de gelo do planeta o nível dos oceanos recuou em pelo menos 120 metros. Isso fez com que verdadeiras pontes naturais, conexões terrestres surgissem em diversos pontos da Terra – entre o Japão e a Coreia, entre as Filipinas e a Indonésia e, no caso de Bering, entre a Ásia e a América (atual extremo leste da Rússia e atual Alasca).

Trata-se de um trecho de mar raso, de 30 a 50 metros. Com a descida do nível dos oceanos, um amplo território tornou-se terra.

Outra teoria, conhecida como Malaio-Polinésia, afirma que a ocupação americana ocorreu por meio de canoas. Esses aborígenes, oriundos da Oceania, teriam pulado de ilha em ilha, rumo ao leste, até chegarem à América.

O maior defensor dessa teoria foi o etnólogo francês Paul Rivet (1876-1958) – ele não negava o Estreito de Bering, mas afirmava que a ocupação americana devia ter ocorrido por mais de uma rota. Segundo os defensores dessa hipótese, teriam sido duas rotas migratórias por meio de tais barcos. Uma primeira, 6 mil anos antes da realizada pelo Estreito de Bering; e uma segunda, praticamente no mesmo período.

Reprodução/Foto-RN176 Alguns locais foram alcançados apenas de helicóptero… Foto: Jason Briner / BBCBrasil.com

Reprodução/Foto-RN176 … e outros, como a ilha Warren, de barco Foto: Jason Briner / BBCBrasil.com

Colaboração brasileira

É do brasileiro Walter Neves, antropólogo e arqueólogo da Universidade de São Paulo, a polêmica teoria dos dois componentes biológicos.

Ao analisar morfologicamente fósseis de Homo sapiens pré-colombianos, ele chegou à conclusão de que a América recebeu duas levas migratórias, uma anterior e que acabou extinta, de indivíduos vindos da África e da Oceania; uma seguinte, que prosperou, vinda da Ásia.

Mas Neves não é o único brasileiro a colocar um ponto nessa história de povoamento americano.

A arqueóloga Niède Guidon, do Parque Nacional da Serra da Capivara, defende que a América já era habitada por humanos há 58 mil anos – baseada ela em resquícios arqueológicos. Sua teoria é bastante controvertida.

Em 2016, uma equipe de quinze arqueólogos, da Universidade de São Paulo e da empresa Zanettini Arqueologia, encontrou artefatos de povos pré-colombianos em um sítio de São Manuel, no interior do Estado. As estimativas são de que os itens sejam de 11 mil anos atrás – antes do que se supunha para a ocupação da região.

BBC BRASIL.com – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC BRASIL.com.