ELE PEDALOU POR TODA A GRANDE MURALHA DA CHINA

ROTANEWS176 E POR BICYCLING 30/08/2019 19:22                                                                                            Por Charles Thorp

Novo documentário Against The Wall relembra uma épica expedição, feita em 1990

Reprodução/Foto-RN176 (Fotos: Kevin Foster)

Em junho, Kevin Foster pôde se lembrar da última manhã de sua viagem pela Grande Muralha da China, 29 anos atrás.

“O Mar de Bohai estava no horizonte”, disse ele. “Havia emoção, mas também tristeza. Eu morava no muro havia dois meses, e era a melhor casa que já tive.” A Muralha da China também deixou marcas pelo corpo de Foster durante sua jornada épica até o mar, começando pelo Deserto de Gobi: cortes e costelas quebradas. Mas isso não tirou  sua determinação. Mais tarde naquele dia, ele completaria sua jornada, gravando seu nome na história do ciclismo.

Ninguém pensou que a façanha de Foster fosse possível, devido não apenas às permissões necessárias, mas também por um trauma brutal sofrido na infância. Aos 8 anos de idade, Foster acidentalmente pegou um fio de alta tensão enquanto subia em uma árvore, tomando uma descarga 65.000 volts. Ele caiu de 9 metros no chão, e os médicos pensaram que ele nunca mais voltaria a andar.

Por quatro anos, Foster usou uma cadeira de rodas para se locomover. Ele olhava ansiosamente para outras crianças brincando lá fora em suas bicicletas, usando isso como inspiração para ficar de pé novamente por conta própria. Os médicos ficaram encantados quando ele se mostrou capaz de subir em sua Schwinn novamente. Pedalar tornou parte de sua fisioterapia. Foi depois de um desses rolês de bike que ele viu a Grande Muralha da china na televisão, despertando um fascínio infantil que se tornaria o catalisador de sua improvável busca anos depois.

Agora, a jornada de Foster se tornou tema de um curta-metragem. “Against the Wall”, uma coprodução entre EUA e China que teve sua estreia mundial em Los Angeles, em maio, e que agora está sendo exibida em Pequim e Xangai, na China. Apresentando imagens de arquivo e entrevistas com especialistas, inclusive com o vencedor do Tour de France, Greg LeMond, o documentário chegou ao circuito de festivais e se qualificou para uma indicação ao Oscar.

A seguir, Kevin Foster compartilha suas memórias de uma das maiores aventuras de bicicletas já realizadas na história.

BICYCLING: Quando a Grande Muralha da China entrou em sua vida?

Kevin Foster: Eu tinha 12 anos e estava andando de bicicleta com rodinhas. Entrei em casa e vi a Grande Muralha na televisão. Quando você é criança, essa é a melhor ciclovia que você pode imaginar! Então perguntei a minha mãe o que eu teria que fazer para poder andar nela.

O que ela disse?

Ela disse que eu deveria encontrar a pessoa certa para perguntar, talvez o presidente. Então foi exatamente isso que eu fiz. Escrevi para o presidente Richard Nixon e para o líder da China, Mao Zedong. Eu não contei aos meus pais até depois de colocar as cartas no correio. Eles ficaram chateados quando descobriram, e eu fiquei de castigo. Mas seis meses depois, recebi um pacote da Casa Branca cheio de material sobre a China. Eu escondi isso, e o guardei no fundo da minha mente.

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Quando você o revisitou?

Eu tinha 25 anos e trabalhava como ator. Eu ainda tinha escrito à China há alguns anos para perguntar sobre a possibilidade, mas eles sempre enviavam uma correspondência dizendo que era para eu esperar. Acabou quando eu conheci um escritor político que me disse que eu precisava de alguém para patrocinar a carta e me dar um pouco de credibilidade. Eu trabalhei na campanha do ex-senador Chris Dodd quando era mais jovem, e ele era o chefe do comitê de relações exteriores da China. Então pedi que ele escrevesse uma carta para mim. Ele pareceu fascinado com a ideia, e me ajudou. Eu também conhecia algumas pessoas na National Geographic com as quais me comuniquei em projetos escolares, e elas tiveram a gentileza de fazer uma carta para mim também. Essas duas cartas saíram em meu nome, e quatro meses depois eu tive permissão para pedalar na Grande Muralha da China.

E qual foi o seu primeiro passo para realmente chegar lá?

Eu sabia que precisaria de patrocinadores para conseguir dinheiro suficiente para fazer a viagem. Eu estava fazendo ligações quando conheci o fotógrafo corporativo das bicicletas de estrada da Cannondale. Ele ficou tão surpreso com a história que chamou o presidente da empresa, Joe Montgomery. A próxima coisa que soube foi que estava no escritório dele, onde ele me perguntou o que eu precisava em relação a equipamentos. Comecei a conseguir mais e mais patrocinadores. Eu conheci o agente esportivo Charlie Litsky, que estava trabalhando com John Tomac na época, e ele ajudou a fazer alguns grandes negócios para me levar para a China.

Reprodução/Foto-RN176

Como você começou a treinar para isso?

Uma vez que eu recebi a permissão, percebi que teria que fazer isso. Eu sabia que teria que treinar muito. Depois que minha mountain bike de alumínio Cannondale chegou, eu a montei e saí em minha primeira pedalada. Comecei com uma viagem de 13 quilômetros por Waterbury, Connecticut, onde eu morava na época. Doeu, mas no dia seguinte eu me forcei a fazer 16 km. Eu continuei melhorando a partir daí. E quando eu estava começando a ganhar um pouco de força, um caminhão me pegou em uma das estradas locais onde eu pedalava. Fiquei parado por um tempo e as pessoas começaram a duvidar se eu realmente faria isso.

Como você se recuperou?

Eu tive que sair de Connecticut e, felizmente, entrei em contato com um treinador olímpico de ciclismo com sede em Lake Placid, [em Nova York]. Ele disse que, quando eu terminasse a minha recuperação, eu poderia ir lá para obter um treinamento adequado. Aquilo realmente me ajudou muito. Antes disso, eu nem tinha o básico. Eu aprendi sobre comer seis vezes por dia e o quão importante é uma dieta . Finalmente chegou a hora de começar o treinamento com a intensidade adequada. Então eu me mudei para Ojai, [Califórnia], onde eu poderia chegar às montanhas. Eu estava firme na minha preparação, pronto para ir, quando acordei com a notícia de que os tanques estavam pela Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial).

Reprodução/Foto-RN176

Então você teve que reagendar.

Eu estava ajoelhado na frente da televisão assistindo a tudo. Não havia como prever essa sequência de eventos. O presidente [George HW] Bush estava dizendo aos americanos para ficarem fora da China. A jornada atrasou novamente, e eu disse a mim mesmo que faria isso no ano seguinte ou que não faria mais. Continuei com minha preparação, fazendo pedais de 90 quilômetros pelas montanhas Topatopa, no norte de Ojai. Aqueles eram os meus campos de treinamento e havia também uma pequena comunidade de Hollywood lá. Meu vizinho era James Brolin e Malcolm McDowell, que também eram ótimos em uma mountain bike.

Quando você colocou seus pneus na Muralha?

Meus amigos da National Geographic sugeriram que eu esperasse o calor diminuir e depois pedisse para fazer um teste na Grande Muralha. Eu fui para a China logo após o Dia de Ação de Graças naquele ano. Fomos a uma seção chamada Mutianyu, a cerca de duas horas fora de Pequim. É uma das minhas seções favoritas da Grande Muralha da China, porque é como uma montanha-russa. Eu fiz cerca de oito quilômetros e quebrei meu eixo traseiro.

Como você lidou com isso?

Foi um belo teste, porque ficou claro que eu precisaria endurecer meu equipamento para poder fazer isso. Liguei para a Cannondale, que me enviou um monte de peças novas. Pedi ao meu dono de loja de bicicletas local em Ojai para instalá-las, mas ele afirmou que eu não teria nenhuma loja de bicicletas ao longo da Grande Muralha da China. Ele montou um estande para mim ao lado dele, onde por seis horas eu tirei a bicicleta e a reconstruí. Isso se tornou uma nova prática durante o treinamento. Quando cheguei à Grande Muralha, não havia uma peça que eu não soubesse montar.

Como foi voltar para o verdadeiro pedal?

Fiquei empolgado por finalmente ter acontecido. Eu voei para a China para o negócio real no final de abril de 1990. Havia um pessoal da imprensa lá e, em seguida, pegamos um trem para o início da minha rota, no deserto de Gobi. Decidi que começar no deserto era o caminho a percorrer, para não terminar a viagem no final de agosto com um calor de 60 graus. Tudo se encaixou fisicamente durante as seis semanas em que eu estava lutando contra a areia e o calor no deserto de Gobi. Quando cheguei às montanhas nos arredores de Pequim, eu era uma máquina.

Reprodução/Foto-RN176

Como era sua agenda diária durante o pedal pela Grande Muralha da China?

Os dias começavam às 4 da manhã, quando eram cerca de 26 graus Celsius. Às 10 horas, eram 37 graus. Eu usava máscara e os óculos, mas a areia era tão fina que passava. Eu tinha que esvaziar meus sapatos várias vezes ao dia e estava constantemente mastigando areia. Eu entrava no Land Cruisers com ar-condicionado apenas para comer por alguns momentos, mas os momentos mais difíceis eram deixar esses carros e voltar ao pedal.

Houve contratempos?

Fui hospitalizado duas vezes durante a jornada. A primeira vez foi por exaustão e a segunda foi quando eu caí em um buraco com cerca de um metro e oitenta de profundidade. Caí de lado em cima de uma caveira que bateu em minhas costelas. [ Nota do editor: Foster disse que este era um crânio humano, embora não pudéssemos confirmar. ] No buraco havia uma cobra venenosa, e eu não sabia se tinha sido mordido. Usei minha bicicleta para sair do buraco, acenei para a equipe e pedi que me levassem ao hospital mais próximo. Eu era capaz de descartar uma mordida, sentia dores. O médico me disse que eu tinha quebrado três costelas, então tive que me recuperar por alguns dias. Isso foi apenas um dia, no entanto. Muitas vezes, a natureza me testou, como ondas gigantes de areia no deserto e granizo do tamanho de bolas de golfe.

Como você superou esses eventos?

Eu fazia um ritual todas as manhãs durante o café da manhã, onde olhava para um pedaço do muro que já tinha deixado para trás e agradecia por me ter me permitido passar. Então eu olhava para a rota à frente e pedia permissão para atravessá-la naquele dia. Isso me colocou no lugar certo mentalmente. Houve momentos em que eu podia ficar lá no início do dia e ver uma semana de bicicleta à minha frente.

Qual foi o seu momento favorito na Grande Muralha?

Não havia nada como o pôr do sol. Esses foram os momentos que se destacam na minha mente. Por cerca de seis semanas no deserto e nas seções reconstruídas no leste, eu tinha toda a parede só para mim. Eu poderia apenas sentar lá e ver o sol se pôr. Quando chegamos a Pequim, havia mais pessoas durante os dias, mas quando a escuridão chegava, o muro era só meu novamente. As noites eram espetaculares, e eu refletia sobre o meu sonho de infância enquanto ficava lá, olhando para as estrelas.