‘A Ditadadura Recontada’: roteiro do 1º episódio

6-VÍDEOS: DE COMO OCORREU! –

ROTANEWS176  30/03/2024 14h05

Reprodução/Foto-RN176 Podcast original CBN e Globoplay ‘A Ditadura Recontada’. — Foto: CBN e Globoplay

CENA 01: INTRODUÇÃO – Narração Nadedja

NADEDJA

Entre 1964 e 1985, os brasileiros foram governados por cinco generais. Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Eles todos se conheciam desde muitos anos antes do Golpe de 64, frequentaram as mesmas escolas, riram das mesmas piadas e, em muitos casos, disputaram cargos importantes entre si.

Na intimidade desse círculo de generais, o Brasil foi presidido naquele período por Tamanco, Português, Milito, Alemão e Figa. Os generais são um grupo fechado, raramente contam das armações políticas que participam quando estão no poder. E, fora dele, ou se calam ou são esquecidos.

Por isso, a gente sabe muito sobre como os militares tomaram o poder em países como o Brasil, mas quase nada sobre o que acontecia uma vez que eles tinham chegado lá, à força. E menos ainda sobre as razões da saída deles.

Eu sou Nadedja Calado, e nessa série de seis episódios nós vamos jogar luz sobre os bastidores desse período sombrio, escutar gravações desses homens poderosos que ficaram inéditas por décadas, e entender como alguns dos militares que deram o golpe em 1964 trabalharam anos depois para desmontar a ditadura que eles mesmos ajudaram a estabelecer.

A série é baseada na coleção de cinco livros do jornalista Elio Gaspari que reconstituíram de forma detalhada como o regime nasceu, se sustentou e acabou abandonado. Nessa história, dois homens se destacam. O general Ernesto Geisel, que foi presidente do Brasil de 1974 a 1979, e o ministro-chefe da Casa Civil dele, general Golbery do Couto e Silva.

Geisel e Golbery foram pessoas tão diferentes que é até difícil entender como formaram uma dupla tão alinhada. Geisel acreditava na evolução dos seres, das sociedades e da vida em geral. Golbery era cético e irônico.

Geisel acreditava em muitas coisas, inclusive em si próprio. Golbery não acreditava em quase nada, muito menos em si mesmo. O general Ernesto Geisel era um moralista, defensor de um governo forte, adversário da ideia de eleições diretas pra a escolha de presidentes e governadores e um crítico amargo do parlamento.

Golbery criou e dirigiu o SNI, o Serviço Nacional de Informações. Esse era o principal órgão de espionagem da ditadura militar. Mais tarde ele se arrependeu e chamou a própria criatura de monstro.

Geisel foi uma pessoa reservada e de trato aparentemente difícil. Mas aqui nesse podcast a gente vai mostrá-lo de um modo que ninguém nunca ouviu. Ninguém, com exceção de Elio Gaspari.

Gaspari passou mais de 20 anos analisando arquivos, fitas e documentos da ditadura. Ele fez horas e horas de entrevistas com as figuras mais importantes daquela época. Foi esse material todo, além de tudo que ele viu e viveu como jornalista, que serviu como base para os livros. E que também vai guiar a gente nesse podcast.

Muitos desses áudios que ajudam a contar a história da ditadura vão ser ouvidos aqui pela primeira vez. Eu não me debrucei sozinha sobre todo esse material. Nesse projeto a gente recebeu a ajuda fundamental da pesquisadora Helena Dias.

Ela teve amplo acesso ao arquivo de Gaspari. Muitos dos momentos importantes e inéditos que a gente vai mostrar foram contados a Gaspari pelo próprio general Ernesto Geisel. Outros estão em gravações feitas pelo próprio Geisel, há cinco décadas. A Helena vai surgir aqui no podcast para explicar certos conceitos, acrescentar contexto de alguns momentos importantes, ou trazer detalhes de bastidores das histórias que a gente vai contar.

Só pra te mostrar o que vem pela frente, vamos destacar alguns desses momentos marcantes e inéditos na voz de Geisel. A Helena vai contar pra gente.

CENA 02: Comentário Helena

HELENA

Esses áudios têm uma enorme importância histórica, porque mostram como pensava quem mandou na ditadura. Como a opinião do Geisel sobre a censura…

AAUDIO 01 – Sonora Geisel:

A censura à imprensa, em certas fases, é necessária. Mas ela também se prolongou demais.

HELENA

… a explicação dele sobre a decisão de começar a distensão “lenta, gradual e segura” da ditadura…

AUDIO 02 – Sonora Geisel:

Eu achava que ela tinha que acabar, porque não tinha mais muita razão de ser. E depois é o seguinte, uma ditadura que permanece muito tempo se deteriora.

HELENA

… em contradição com a importância que dava ao poder permitido pelo Ato Institucional número 5, o instrumento mais autoritário da ditadura:

AAUDIO 03 – Sonora Geisel [Retirada do ep04]

Eu não abro mão do AI-5. É um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio. Eu sei lá o que é que vem?

Os áudios também revelam que os militares sabiam muito bem o que se passava nos porões, e as ilegalidades no combate à guerrilha da esquerda armada. Nesse áudio aqui, inédito e histórico, Geisel fala sobre a execução de combatentes já capturados e rendidos na Guerrilha do Araguaia, algo que o Exército jamais assumiu oficialmente, até hoje.

Essa gravação foi feita há 50 anos, e tá muito difícil de ouvir. Então a editora Barbara Falcão reconstituiu as frases com o uso de inteligência artificial, um recurso que a gente vai usar algumas vezes nesse podcast: (colocar a versão em IA)

AUDIO 04 – Sonora Geisel [Retirada do ep04]

“Por que antigamente você prendia o sujeito e o sujeito ia lá para fora. Oh Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.

HELENA

Tem também os bastidores e as articulações políticas. Longe do público, eles não poupavam ninguém. Por exemplo, a avaliação do Geisel sobre o general Costa e Silva, que decretou o AI-5, não era nada boa:

AAUDIO 05 – SONORA Geisel [Retirada do Ep02]:

Realmente, além disso, Costa e Silva era preguiçoso. Tava doente, já tava doente, era diabético, sofria do coração.

Isso já dá uma ideia do que o podcast vai mostrar. Mas calma que ainda tem muita coisa pela frente.

CENA 03: Heitor Ferreira

NADEDJA

A gente ouviu algumas falas reveladoras de Ernesto Geisel, mas outro personagem importante para conhecer a Ditadura foi o general Golbery do Couto e Silva. Só que ele não gravou entrevistas e não tinha oficialmente um arquivo. É aí que entra na história uma pessoa essencial, o capitão do Exército Heitor Ferreira.

Esse arquivo vivo da Ditadura trabalhou como secretário de Golbery de 64 a 67. Depois se tornou assistente do Geisel na presidência da Petrobras e, em 74, foi para Brasília como secretário particular dele. Em 79, o último dos presidentes ditadores militares, João Batista Figueiredo, decidiu manter Heitor como secretário, e ele ficou até 83. Heitor tinha apenas 27 anos quando foi trabalhar com Golbery e presenciou tudo o que aconteceu nos governos militares.

Ele escreveu metodicamente por mais de duas décadas um diário que, em 1985, somava 17 cadernos escolares com cerca de meio milhão de palavras. E além de escrever, como bom secretário, Heitor guardava tudo.

HELENA

O general Golbery passou a Heitor Ferreira milhares de documentos, bilhetes e até rabiscos.

E Heitor sempre tinha umas caixas de papelão debaixo da mesa dele, onde ia atirando aqueles papéis. E foi isso que formou o arquivo Golbery do Couto e Silva, barra Heitor Ferreira, que foi uma das fontes fundamentais da série de livros do Elio, a base desse podcast.

Golbery tinha um sítio em uma cidade nos arredores de Brasília, chamada Luziânia. E lá, numa garagem, ele deixou caixas com esses bilhetes, anotações, recados, atas… tudo o que ele acumulou ao longo dos anos no poder. E um belo dia, a garagem foi infestada de mofo e esses documentos foram encaminhados para Elio Gaspari.

Heitor Ferreira também reuniu um arquivo de áudios preciosos. Nos últimos meses de 1973, o governo Geisel ainda estava sendo formado pra posse, prevista para março de 1974. Heitor recebeu a autorização de Golbery e Geisel pra gravar as conversas que os dois tinham e também os telefonemas do presidente. Os registros históricos de Heitor formam um acervo de 5 mil documentos e quase 300 horas de gravação em áudio.

São conversas soltas, telefonemas e reuniões. E a preocupação dele era exclusivamente com a preservação da memória. Tanto que, por quase meio século, ele nunca abriu aquelas caixas, nem consultou o material.

NADEDJA

Depois que deixou o governo, em 1983, Heitor Ferreira seguiu escrevendo. Trocou os diários pelas críticas e artigos sobre história e literatura. Traduziu livros e tinha admiração especial pelo estadista britânico Winston Churchill.

Morreu em agosto de 2022, aos 86 anos.

Antes mesmo do acesso aos arquivos de Golbery e Heitor Ferreira, Gaspari mantinha longas e profundas conversas com Geisel. Muitas delas aconteceram a partir de 1979, na mesa de canto de um restaurante no Aterro do Flamengo, com uma estrutura envidraçada que permitia a vista espetacular da Baía de Guanabara.

HELENA

Gaspari chegava com antecedência e escolhia uma mesa. Quando Geisel chegava, ele passava pelo salão do restaurante e, invariavelmente, as pessoas olhavam para baixo, cochichavam, faziam comentários. Gaspari achava aquilo curioso.

Um dia perguntou para Geisel: “Presidente, toda vez que o senhor entra no salão, as pessoas olham para baixo, conversam, cochicham.” E Geisel respondeu, “Ah, deve ser o medo do ato 5”.

Demorou 15 anos para Geisel aceitar gravar as conversas que tinha com Gaspari. Entre 1994 e 1996, eles fizeram uns 20 encontros na sala do apartamento do Geisel em Ipanema, com duração de 90 minutos, o tempo de gravação de uma fita cassete de antigamente, 45 minutos de cada lado.

Quando Geisel ficou doente, os encontros foram suspensos. E o combinado dos dois era que as fitas das conversas ficariam com o ex-presidente.

Depois que Geisel morreu, em 1996, a filha dele, Amália Lucy, enviou 12 dessas fitas para Gaspari, que dedicou anos pesquisando a trajetória política do ex-presidente.

NADEDJA

Então, só para amarrar tudo o que trouxe a gente até aqui: As conversas gravadas entre Gaspari e Geisel, os arquivos guardados por Heitor Ferreira, as gravações de Geisel e de Golbery feitas por ele, milhares de documentos, e o testemunho e a memória do Elio Gaspari organizando tudo.

CENA 04: Quem é Nadedja

NADEDJA

E deixa eu só me apresentar. Eu falei meu nome no comecinho do episódio, mas como a gente tem um caminho juntos pela frente, vou te contar um pouco mais da minha relação com essa história. Meu nome é Nadedja Calado, sou jornalista, repórter, formada em 2018.

Você pode já ter me ouvido na programação da CBN. No rádio todo mundo cobre um pouco de tudo, mas sempre tive interesse pela editoria de política. Quando eu comecei nessa área, o Brasil tinha voltado a ser uma democracia já fazia 33 anos.

E na democracia cabe aos jornalistas fuçar, perguntar, insistir para quem está no poder se explicar. Dar transparência aos atos. Prestar contas ao povo que elegeu e sustenta as autoridades.

Nem sempre foi assim. Eu sei porque o meu pai, Stenka Calado, me contou. Dele eu puxei o nome difícil, o nariz e o jornalismo.

Só que ele exerceu a profissão durante a ditadura militar, sobreviveu a ela e queria que eu soubesse o que aconteceu. Quando eu era pequena, ele me contava historinhas, mais ou menos adaptadas para uma criança entender, que falavam do golpe militar, da censura, das marchas nas ruas, da tortura nos porões, da resistência na cultura e da luta para manter viva a esperança de que tudo ia mudar. Eu hoje tenho 28 anos e estou aqui mergulhando nesse acervo de pesquisas sobre esse tempo de que eu só ouvi falar.

A minha geração viu muitas crises, mas não sabe o que é viver em uma ditadura. Eu queria entender melhor esses acontecimentos, desfazer alguns mitos e organizar um monte de fatos que eu tinha estudado na escola e ouvido nas histórias do meu pai. Tudo isso intensificou a minha curiosidade sobre aquele período cheio de omissões, suposições e segredos.

É disso que a gente vai falar a partir de agora.

Sobre os homens que sentavam nas cadeiras do poder.

Sobre como tomavam suas decisões.

Sobre como era, por dentro, esse regime sem participação popular, com as portas fechadas.

Como eu disse, os generais Geisel e Golbery são fios condutores de grande parte das tramas que a gente vai apresentar. Eles estiveram na origem da conspiração de 64 e no centro do primeiro governo da ditadura.

Em 74, dez anos depois do golpe, os dois assumiram o poder com o propósito de desmontar o regime que eles mesmos tinham ajudado a instalar. Elio Gaspari resume com precisão o por quê.

[Insere a fala do Gaspari aqui]

COMENTÁRIO GASPARI

Olha, o Geisel e o Golbery são dois personagens diferentes até 64. O Golbery era um conspirador. O Geisel, de jeito nenhum. O Geisel tinha a obsessão pela Unidade e pela disciplina no Exército.

Eles participaram da deposição do Jango em nome do combate à esquerda e da disciplina militar. Essa disciplina Militar, no dia da queda do Jango, começou a ser violentada com a colocação do General Costa Silva que comandava uma mesa como comandante do Exército.

Ali começa um processo de indisciplina militar que dura todo o período da ditadura até a demissão do Frota, com exceção do período do General Orlando Geisel no Ministério do Exército durante o governo Médici, quando ele consegue, à sua maneira, manter a disciplina militar. Antes e depois o que havia era bagunça.

E o que o Geisel queria acabar era com a bagunça. Ele não cansava de repetir que não não foi movido por uma vocação democrática, ele era contra eleição direta para presidente da República e achava que o congresso não devia se meter com o orçamento. Agora, bagunça no quartel, de jeito nenhum.”

NADEDJA

Ou seja. Geisel e Golbery fizeram isso porque entenderam que o regime militar, mesmo atribuindo a si mesmo o monopólio da ordem, era uma grande bagunça.

Esse é A Ditadura Recontada: as Vozes do Golpe, um podcast original Globoplay produzido pela CBN.

CENA 05: Jango e a crise

AUDIO 08 – Sonora Jango: trecho 01

“De nada vale ordenar a miséria nesse país. Nada adianta dar lhe aquela aparência…”

NADEDJA

Sessenta anos atrás, o Brasil tinha como presidente um homem tímido e tolerante. Um homem sem inimigos.

AUDIO 09 – Sonora Jango: trecho 02

“Meus patrícios. A hora e a hora da reforma.”

NADEDJA

Todos os ódios que o presidente João Goulart despertou vieram da política, nunca dele como pessoa.

AUDIO 10 – Sonora Jango: trecho 03

“…é o testemunho mais vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro.”

NADEDJA

A gente está ouvindo trechos do discurso do presidente João Goulart no dia 13 de março de 1964. A situação já estava turbulenta, mas a gente pode dizer que foi a partir daqui que Jango, de fato, começou a incendiar o Brasil.

O presidente João Belchior Marques Goulart gostava de cavalos de corrida, de dançarinas e das tramas políticas.

Como eu acabei de falar, ele não tinha inimigos pessoais. Mas na política a coisa era muito mais complicada. Jango era o vice do presidente Jânio Quadros, que renunciou ao mandato em 1961.

Setores das Forças Armadas, da classe política e do empresariado brasileiro não queriam que João Goulart assumisse. Criaram um arremedo de parlamentarismo, que limitou os poderes do presidente recém-empossado. É que no parlamentarismo, o presidente geralmente tem poder limitado.

Ele vira uma figura simbólica, cerimonial. Quem realmente administra o país é o primeiro-ministro, que, em geral, é um deputado e é eleito dentro do próprio parlamento. A balança de poder pende, então, pro Congresso.

O mundo vivia a Guerra Fria, um conflito político entre duas potências nucleares, a União Soviética, a potência comunista, e os Estados Unidos, a potência capitalista. O Brasil tinha se alinhado com os americanos, mas os opositores de Jango tinham medo de que ele mudasse de lado e fosse flertar com a União Soviética. Um movimento capaz de balançar o equilíbrio de forças no mundo.

Desde o primeiro dia na presidência, Jango trabalhou para restaurar os próprios poderes. Em janeiro de 63, depois de um plebiscito, Jango conseguiu restabelecer o presidencialismo no Brasil. Ou seja, o presidente mandava sozinho, abrindo mão do primeiro-ministro, cargo que havia sido criado para controlar Jango.

Alguns meses depois, em outubro de 63, ele pediu ao Congresso a decretação de um Estado de Sítio, e aí a situação se complicou de verdade. Jango alegou a gravidade da crise político-econômica e a ameaça de distúrbios internos. Só que tanto os partidos da esquerda quanto os da direita rejeitaram essa proposta de conceder poderes excepcionais para ele.

Depois desse fiasco, Jango radicalizou o governo e abraçou de vez as bandeiras da esquerda.

AUDIO 11 – Sonora Jango: trecho 04 – Lutar pela Reforma

Com o alto testemunho da nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça, que só o povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira.

NADEDJA

Nesse mesmo discurso do dia 13 de março de 64, o presidente defendeu em praça pública a reforma agrária, a reforma tributária e a reforma eleitoral.

AUDIO 12 – Sonora Jango: trecho 04 – Pelo Progresso do Brasil

Pela reforma eleitoral plena, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e ao lado do povo, pelo progresso do Brasil.

Ele defendeu também o aumento do salário mínimo e a encampação de refinarias particulares de petróleo. Era muita coisa de uma vez só.

A discussão em torno dessas reformas de base tinha o potencial de chacoalhar o Brasil de baixo para cima. Quanto mais os indicadores econômicos e sociais despencavam, mais a tensão subia. Aquela tentativa de decretar o Estado de Sítio, feita meses antes, tinha atiçado ainda mais os grupos que já conspiravam pra derrubar Jango.

Assim, em março de 64, a árvore do regime democrático brasileiro estava caindo. A dúvida era se seria empurrada para a direita ou para a esquerda.

Tudo começaria a ser decidido depois de outro discurso inflamado de Jango, na noite de 30 de março de 64, na então sede do Automóvel Clube, um prédio do século 18 construído para ser a mansão do Marquês de Barbacena, no centro do Rio de Janeiro.

Entre outras tantas tensões que aconteciam ao mesmo tempo no Brasil daquele momento, havia uma crise entre militares de baixa patente e oficiais da Marinha, como o noticiário de rádio da época explicava.

AUDIO 13 – Sonora trecho de rádio jornal:

Jango estava passando a Semana Santa no Rio Grande do Sul, quando um grupo de soldados e cabos da Marinha de Guerra, liderados pelo Cabo Anselmo, rebelou-se e, depois de sair às ruas, foi se abrigar no Sindicato dos Metalúrgicos.

NADEDJA

O ministro da Marinha, Silvio Mota, mandou punir os rebelados. Jango interveio.

AUDIO 14 – Sonora Jango: trecho 05

Estava no Sul, quando soube de uma crise que rompia-se na nossa Marinha de Guerra, desloquei-me imediatamente para o Rio de Janeiro. … É que eu não permitiria jamais que se praticasse qualquer violência contra aqueles brasileiros se encontrávamos se homiziados dentro de um sindicato.

NADEDJA

Em vez de prender os rebeldes, Jango preferiu trocar o ministro. Os militares interpretaram esse ato como a vitória da anarquia.

AUDIO 14 continua – Sonora Jango

Eu estaria faltando a mim mesmo. Eu estaria faltando convosco, sargento. Estaria faltando com a vossa esposa e com a vossa mãe, se naquela hora eu desse uma ordem de massacre contra homens que também são brasileiros e que se erraram, tenho o direito de errar.

NADEDJA

Depois desse discurso, o país nunca mais seria o mesmo.

CENA 06: O Golpe

NADEDJA

Quando a gente pensa no golpe de 64, pode acabar imaginando o caos, tanques nas ruas, confrontos, tiros, mas a revolta que instalou os 21 anos de ditadura militar no Brasil não aconteceu bem assim.

A conspiração foi um movimento lento e silencioso. Reunia militares de média e alta patente e lideranças civis, de governadores a empresários. Contava também com o apoio discreto do governo norte-americano.

A direita não tinha nem base definida, nem data certa pro golpe. Mas os conspiradores tinham uma senha. Qualquer nova tentativa de ato de força de Jango à esquerda seria respondida com o golpe liderado por forças militares à direita.

[Respiro]

NADEDJA

A base mais forte dos conspiradores estava em Minas Gerais. O que se imaginava era que a rebelião militar deveria começar onde houvesse maior apoio do poder civil. Em nenhum outro estado brasileiro importante, os generais e o governador tinham se aproximado tanto do planejamento da insurreição.

Os dois generais de Minas tinham pressa. O general Carlos Luiz Guedes estava prestes a ser substituído no comando da infantaria sediada em Belo Horizonte. O general Olímpio Mourão Filho estava a um passo da aposentadoria compulsória que o afastaria do comando da QUARTA Região Militar, sediada em Juiz de Fora.

O deputado Tancredo Neves, líder do governo na Câmara, havia aconselhado Jango a não comparecer ao encontro do Automóvel Clube, argumentando que alimentaria a divisão das forças armadas. E estava certo. Na noite de 31 de março, o general Mourão Filho ouviu o discurso incendiário de Jango, aquele dos sargentos, que tinha sido transmitido ao vivo pelo rádio.

E depois, de madrugada, Mourão deflagrou o que chamava de Operação Popeye, ou seja, colocou os tanques na rua.

O general Mourão já conspirava contra o presidente João Goulart desde 1961, como ele mesmo conta nesse registro daquela época:

AUDIO 15 – Sonora: Mourão_Guanabara

No dia 08 de Janeiro de 1961, eu comecei a trabalhar na organização desse movimento. Em Santa Maria, no comando da terceira divisão de infantaria, onde estive 17 meses, depois no comando da segunda região militar, onde estive 5 meses…onde estou há seis meses. O estado da Guanabara viveu tempos ominosos, dominado, folhado, amargurado, humilhado. Nós vamos libertar o estado da Guanabara.

NADEDJA

Nosso podcast vai trazer muitos arquivos de áudio preciosos. Mas quando a gente não tiver uma gravação e houver algum registro em texto, você vai ouvir a voz do jornalista Thiago Barbosa. Para começar, o Thiago vai ler para a gente o que o Mourão escreveu no diário dele às cinco da manhã do dia 1º de abril de 1964.

AUDIO 16 – Sonora Thiago – Locução Diário do Mourão

Eu estava de pijama e roupão de seda vermelho. Posso dizer com orgulho de originalidade, creio ter sido o único homem no mundo que desencadeou uma revolução de pijama.

NADEDJA

No papel, a Operação Popeye seria o seguinte: Uma pequena tropa desceria de seu quartel em Juiz de Fora, rumo ao Rio, um trajeto de 150 quilômetros. Mourão acreditava que poderia tomar de assalto o prédio do Ministério da Guerra em menos de 24 horas.

O resto do governo cairia de podre. Não foi bem assim que aconteceu, mas o fato é que Mourão ficou famoso por ter sido o general que começou o golpe militar.

Mas o caminho para 64 começa três anos antes. Então vamos voltar até lá com a Helena.

AUDIO 17 – Sonora Geisel:

Tinha uma guarda de honra formada, o Batalhão de Guardas, para a cerimônia, quando chegasse o presidente e etc…

HELENA

Aqui a gente está ouvindo Geisel contando o que aconteceu no dia da renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 61.

AUDIO 18 – Sonora Geisel:

Então, quando o presidente disse que não estava bom, tocou lá o hino nacional, prestou-se as continências, etc. E ele foi escoltado pelo Pedro Geraldo e por mim para o Palanque, onde estavam os ministros militares e outros atores.

HELENA

Esse Pedro, de quem Geisel fala, é Pedro Geraldo de Almeida, chefe da Casa Militar do presidente Jânio Quadros, entre janeiro e agosto de 61.

Nessa época, Geisel tinha acabado de ser promovido a general e comandava a Guarnição de Brasília, o comando militar do Planalto.

AUDIO 19 – Sonora Geisel:

Aí o Pedro Geraldo, no caminho, nós um pouco atrás, o Jânio caminhando um pouco lá frente, o Pedro me disse, prepara que hoje vai haver coisa grossa. Eu disse, sei lhe o que era, intervenção na Guanabara, encontrou, Lacerda, não, coisa muito pior.

Eu achei uma barbaridade, não havia razão para ele renunciar, quer dizer, eu não conhecia muitas futricas dele, mas eu não via razão.

HELENA

Os militares foram pegos de surpresa com a renúncia do presidente. E o general Geisel conta como foi a reação deles.

AUDIO 20 – Sonora Geisel:

Eu vi que a gente tinha que fazer tudo possível para evitar a renúncia. Então fui pro ministério, peguei o Orlando, que era o chefe de gabinete, e eu devia ir junto. Ele disse, olha, o Jânio renunciou.

Ah, não pode ser, eu renuncio. Não, não sabiam. Ele não disse nada a eles, não sabiam.

Aí os três ministros foram ao palácio, foram ao palácio e foram conversar com o Jânio.

HELENA

Esse Orlando que o Geisel menciona é o irmão dele, Orlando Geisel, também general. Ele é uma figura fundamental pra história da ditadura, e ainda vai aparecer bastante nesse podcast. Bom, Como os militares não conseguiram evitar a renúncia do presidente Jânio, se articularam para impedir que o vice João Goulart chegasse ao poder. Uma possibilidade seria forçar um governo militar dando um golpe, mas pra isso teriam que respeitar a hierarquia, entregando o governo ao marechal Odílio Deni, o ministro da Guerra do Jânio, o que não foi feito.

[Respiro]

HELENA

O Exército se dividiu e o Terceiro Exército, com sede no Rio Grande do Sul, rompeu com o comando em Brasília. Os militares de lá se alinharam com o governador Leonel Brizola na campanha pela legalidade. Para evitar um confronto maior entre as forças militares, a alternativa política era impedir Jango de tomar posse e convocar eleições diretas.

Só que alguns militares tinham uma outra ideia na cabeça, a Operação Mosquito.

AUDIO 21 – Sonora Geisel:

Então montaram a célebre Operação Mosquito, quer dizer, a ideia de com um avião de caça atacar o avião em que vinha o Jango, com mais pessoas. Mas isso eu não sei, eu acho que lá no Rio conseguiram acabar.

E nem sei se realmente eles pensavam em executar isso ou se era mais uma guerra psicológica.

HELENA

É isso mesmo que você ouviu, militares planejavam usar um avião de caça para derrubar o avião do presidente.

HELENA

Após muitas conversas nos bastidores, os militares cederam e deram posse a Jango, só que exigiram a implantação do parlamentarismo, reduzindo em muito o poder do presidente.

O Congresso elegeu o primeiro-ministro, que governaria o país. O escolhido foi o moderado Tancredo Neves. Assim, Jango assumiu a presidência com poderes muito limitados. Ou como ele mesmo definiu, virou uma rainha da Inglaterra.

CENA 07: O envolvimento dos Estados Unidos

NADEDJA

Outro elemento importante pra gente contar como nasceu o golpe militar de 1964 é o papel dos Estados Unidos. Desde o início da década de 60, o governo americano acompanhava os acontecimentos políticos no Brasil com a preocupação de que o país se tornasse uma nova Cuba. A revolução na pequena ilha do Caribe, em 1959, tinha abalado o xadrez político mundial em plena Guerra Fria.

Cuba se transformou na primeira nação comunista das Américas, a menos de 40 quilômetros da costa dos Estados Unidos. Se o Brasil, o maior país da América Latina, fizesse um movimento parecido, a hegemonia americana seria posta em risco.

O Brasil sempre esteve alinhado aos Estados Unidos. Mas quem iria garantir que isso não pudesse mudar? Dois personagens americanos são fundamentais para contar a história do envolvimento dos Estados Unidos no golpe de 64: o embaixador Lincoln Gordon e o coronel Vernon Walters. O diplomata estava no Brasil desde 61, falava português e estava empenhado em defender os interesses americanos. Ele atuava junto com o coronel Walters, que articulava com os conspiradores e era adido militar dos Estados Unidos no Brasil.

O adido militar é um oficial das Forças Armadas que trabalha estreitando ligações com as autoridades militares locais, barganhando informações que interessam a sua nação. Uma curiosidade que ajuda a entender a proximidade de Vernon Walters com os militares brasileiros é que ele era amigo do general Castelo Branco, que viria a ser o primeiro presidente da ditadura brasileira. Os dois lutaram juntos na Segunda Guerra Mundial.

Essa amizade de Walters com os conspiradores brasileiros permitiu que ele acompanhasse muito de perto cada passo do movimento, desde muito antes do golpe, e chegou à Casa Branca com muita antecedência. Há provas concretas disso. Por exemplo, Lincoln Gordon se reuniu com o presidente John Kennedy na Casa Branca na manhã de 30 de julho de 1962.

Kennedy estava inaugurando o sistema de gravação clandestina das conversas que mantinha no Salão Oval. As fitas que registraram esse encontro têm 28 minutos de duração e estão preservadas. Nele, o embaixador disse ao presidente Kennedy que a hipótese de um golpe militar estava no baralho do jogo brasileiro, quase dois anos antes da efetivação do golpe.

Lincoln Gordon era contra a ideia de ter a deposição de Jango como estratégia, mas queria ter a carta dessa possibilidade na mão. Você vai ouvir agora a gravação dublada pelos jornalistas Frederico Goulart e Gabriel Freitas de um diálogo entre Gordon e Kennedy, começando por Gordon.

AUDIO 22 – Sonora Reunião Dublada

Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a espinha militar. É preciso deixar claro, porém com descrição, que não somos necessariamente o X a qualquer tipo de ação militar, contanto que fique claro o motivo.

Sonora Reunião Dublada

Contra a esquerda,

Sonora Reunião Dublada

Ele está entregando o país aos,

Sonora Reunião Dublada

comunistas,

Sonora Reunião Dublada

Exatamente.

NADEDJA

O tema do golpe militar no Brasil esteve na roda de conversas americanas também no dia 7 de outubro de 63.

O presidente Kennedy perguntou ao embaixador Lincoln Gordon que ações concretas poderiam ser tomadas para evitar que se instalasse um regime comunista no Brasil. O embaixador expôs ao presidente, então, dois cenários que imaginava.

No primeiro, Jango iria embora em paz depois de um golpe que o derrubasse do poder. Antes que o embaixador entrasse no segundo cenário, Kennedy interrompeu mencionando a possibilidade de uma situação bizarra que exigisse a intervenção militar direta dos americanos. Gordon disse que essa era uma contingência perigosa.

Naquele momento, ele não acreditava que Jango se arriscaria a instalar um regime como o de Fidel Castro em Cuba. Gordon disse até “se ele tentar, cai”.

Ou seja, quarenta e seis dias antes de ser assassinado, John Kennedy presidiu uma longa reunião na Casa Branca. Nela, em poucos segundos, fez a pergunta essencial ao seu embaixador no Brasil sobre a necessidade de os Estados Unidos intervirem. Lincoln Gordon explicou que essa possibilidade tinha sido discutida, mas era improvável.

AUDIO 23 – Sonora Reunião Dublada

Você vê a situação indo para onde deveria? Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?

AUDIO 24 – Sonora Reunião Dublada

Bem, essa é outra categoria que eu chamo de contingência perigosa, possivelmente requerendo uma ação rápida. Esse é o principal problema.

Lincoln Gordon foi ainda mais específico sobre o que seria necessário em caso de um golpe comunista no Brasil.

AUDIO 25 – Sonora Reunião Dublada

Eu questionei o general O’Meara, eu perguntei a ele uma vez, supondo que o país ficasse sob controle comunista, em um golpe comunista, seria essa uma questão de invasão militar? O que você acha? Precisaríamos de seis divisões? Eu tenho 90 navios, aeronaves e tudo mais.

NADEDJA

Kennedy seria assassinado em 22 de novembro de 1963. O vice-presidente Lyndon Johnson assumiu a presidência dos Estados Unidos, e seguiu os planos já traçados por Kennedy.

No final de março de 64, por ideia de Lincoln Gordon, a cúpula do governo americano trabalhava na preparação de uma força naval que zarparia para a costa brasileira em caso de necessidade para apoiar a derrubada do governo Jango. Um estudo preliminar americano dizia que, para conter um governo hostil no Brasil, seria necessária uma ação militar maciça. Para uma operação desse tamanho, os Estados Unidos mobilizariam 60 mil homens para combater aqui.

Àquela altura, no final de 1963, os Estados Unidos tinham 16.300 homens no Vietnã. Ou seja, o plano para o Brasil exigiria um contingente quatro vezes maior do que a operação de guerra no Vietnã naquele momento.

Como alternativa a essa ação gigantesca, o Departamento de Defesa produziu o Plano de Contingência 261, bem mais discreto.

E esse plano dizia que, caso acontecesse uma revolta democrática, o governo americano poderia entrar com, abre aspas, apoio clandestino ou mesmo ostensivo, particularmente com ajuda logística, combustíveis, alimentos, armas e munições, movimentaria tropas apenas se houvesse provas claras de intervenção do bloco soviético ou de Cuba.

No dia 20 de março de 1964, uma semana depois daquele comício da Central em que Jango defendeu as reformas de base, radicalizando a guinada para a esquerda, o presidente Lyndon Johnson autorizou a formação da Força Naval para intervir na crise brasileira, caso os americanos achassem isso necessário.

HELENA

Elio Gaspari fala da participação do governo dos Estados Unidos no apoio ao Golpe.

[INSERE COMENTÁRIO DO GASPARI AQUI]

COMENTÁRIO GASPARI

Olha a participação Americana no golpe está envolvida em uma névoa. Uma coisa é certa.

O golpe prevaleceu sem a participação de um único militar americano.

Agora, os americanos tinham interesse no golpe? Sem a menor dúvida.

O Presidente Kennedy vivo tratou duas vezes do caso com o embaixador Lincoln Gordon. Gravou as duas ocasiões, nas duas ocasiões tem a hipóteses da interferência militar.

Agora, ela não houve. 31 de março 64 é um acontecimento brasileiro.

Mas para quem gosta de Teoria da Conspiração, na noite de 30 de Março de 64. 30, não 31, hein?

Mais ou menos perto da meia noite, o presidente dos Estados Unidos está conversando com o secretário do Estado Dean Rusk. E o secretário do Estado informa que tem um General Americano já se movendo pelo caso brasileiro. É o Comandante das tropas do Panamá, que na noite de 30 de Março tá indo do Panamá para Washington. Isso é indiscutível.

CENA 08: O golpe esquenta

NADEDJA

Enquanto essa discussão sobre intervenção americana acontecia nas embaixadas, nas ruas, o caldeirão só esquentava.

AUDIO 26 – Sonora – Ditadura da Esquerda – da Direita

O comunismo ateu ou a ditadura da direita, o fascismo perseguidor atroz. Aqui estamos ao lado de figuras que comparecem ao lado do povo, figuras de destaque do mundo político brasileiro, que vieram trazer a sua solidariedade ao povo de Santos…

NADEDJA

No dia 19 de março aconteceu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O movimento se deu em várias localidades e você ouviu sons de discursos na cidade de Santos. Em São Paulo, a passeata mobilizou mais de meio milhão de pessoas, marchando contra o comunismo e pedindo a intervenção militar na política.

Essa passeata deixou bem clara a extensão dos grupos golpistas e o medo que a classe média tinha das reformas e dos movimentos sociais de esquerda que emergiam pelo país. Protestavam diretamente contra o comício de Jango na central do Brasil. A idealização da marcha partiu do deputado federal Antônio Sílvio Cunha Bueno, que era um grande proprietário de terras e diretor da empresa americana Willys Overland Motors do Brasil.

A matriz dessa companhia ficou famosa pela fabricação, em parceria com a Ford, do jipe que os americanos usaram na Segunda Guerra Mundial.

HELENA

Um folheto que foi distribuído alguns dias antes do golpe em várias cidades do Brasil convocava os “brasileiros, democratas, patriotas, homens e mulheres, irmãos de todas as condições sociais”. O chamado era para, entre aspas, “repudiar nas ruas o comunismo totalitário e anti-humano, marchando com Deus e com o espírito dos nossos heróis da liberdade”. Esse folheto é assinado por várias organizações, como a Associação das Donas de Casa, a Associação das Senhoras Brasileiras, a Liga Democrática das Mães Fluminenses e a Campanha da Mulher pela Democracia.

Mas ao contrário do que foi propagandeado, dessa supervalorização do papel dessas mulheres na condução dos protestos, a organização da marcha não ficou a cargo de nenhuma delas. Quem levou o evento adiante foi o próprio Cunha Bueno, além de outros políticos paulistas, como o governador Ademar de Barros. Os vídeos, as faixas e as palavras de ordem lembram muito as que a gente viu durante o governo Bolsonaro, pedindo a volta do regime militar.

Tem um recorte de jornal daquela época que traz o deputado federal Armando Falcão, que viria a ser ministro da Justiça do Geisel, exaltando a participação de mulheres na mobilização a favor do golpe. Mesmo que tudo tenha sido organizado por homens, a presença das mulheres em atos políticos em 1964 foi mesmo uma novidade.

Elas estavam nas ruas, em passeatas e comícios, representando donas de casa e mães da família brasileira. Eram chamadas de guerrilheiras perfumadas. Mas é importante a gente saber quem eram essas mulheres.

Elas faziam parte de um recorte muito específico da sociedade brasileira. A maioria delas fazia parte das elites militares e empresariais, e com um baixo nível de escolaridade. A campanha da Mulher pela Democracia foi criada pela Amélia Molina Bastos, irmã do general Antônio de Mendonça Molina, do setor de Informação e Contrainformação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES.

A vice-presidente, Eudóxia Ribeiro Dantas, já tinha dito publicamente: “o meu marido me incentivava, eu ajudava no que precisava.” O marido em questão era José Bento Ribeiro Dantas, dono da Cruzeiro do Sul, uma das maiores companhias aéreas do país na época. Nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Guanabara, Minas Gerais, Ceará e Pernambuco, essas mulheres atuaram para mobilizar a classe média. E o discurso anticomunista e conservador cristão, tão presente nos dias de hoje, foi fundamental para convocar mais e mais apoiadoras.

NADEDJA

Uma nova fervura faria o caldeirão da crise política entornar de vez. Pouco antes das 10 horas da noite do dia 30 de março, o presidente João Goulart foi até a antessala dos aposentos dele no Palácio das Laranjeiras, residência oficial do presidente no Rio de Janeiro. Tinha uma reunião com o Tancredo Neves e com o secretário de imprensa da presidência, Raul Ryff.

Depois do abalo do Comício da Central do Brasil, aquele do dia 13 de março, do início deste episódio, em que ele fala da reforma agrária e das reformas de base, Tancredo e Ryff tentavam dissuadir Jango de fazer um novo discurso. Essa fala seria para suboficiais e sargentos das Forças Armadas, no Salão do Automóvel Clube, o prédio histórico no centro do Rio. Mas Jango não se deixou convencer. Ele rejeitou o aviso de que ia acabar estimulando a indisciplina militar e foi discursar para os militares de baixa patente.

[Tic tac]

NADEDJA

Faltava um minuto para as 10 da noite, quando João Goulart deixou o Palácio das Laranjeiras em direção ao Automóvel Clube.

Sim, ele falaria.

Tancredo naquele momento previu o pior.

AUDIO 27- Sonora Thiago – Tancredo Neves

“Deus faça com que eu esteja enganado, mas creio ser este o passo do presidente que irá provocar o inevitável, a motivação final para a luta armada.”

NADEDJA

Quando Jango entrou no prédio do Automóvel Clube, outros 20 oradores já tinham falado. A parte decisiva do discurso do presidente foi feita de improviso. Ele estava nervoso e agressivo.

Reclamou daqueles que queriam fazer intriga entre ele e os militares e concluiu de forma apoteótica.

AUDIO 28 – Sonora Thiago – Jango

“Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe das reformas de base tão necessárias ao nosso país.”

“Não queremos o Congresso fechado. Ao contrário, queremos o Congresso aberto. Queremos apenas que os congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares.”

NADEDJA

A avaliação sobre o discurso do Jango fica clara pelo que disse o senador Ernani do Amaral Peixoto, genro de Getúlio Vargas e cacique da base de apoio de João Goulart: “O Jango não é mais o presidente da República”. A repercussão do discurso veio com amplas críticas na imprensa e dos opositores mais duros do governo.

HELENA

Elio Gaspari ouviu do ex-embaixador Lincoln Gordon que, se Jango não tivesse comparecido àquela reunião, talvez seu destino fosse diferente.

[INSERE COMENTÁRIO DO GASPARI AQUI]

COMENTÁRIO GASPARI

O Lincoln Gordon é um dos personagens mais trágicos desses dias. Ele carregou a vida toda a marca da participação dele no golpe. Ele morreu em 2009 aos 96 anos e no memorial fúnebre a filha dele criticou a participação dele no golpe no Brasil.

O Gordon incentivou o apoio americano. É o patrono da operação Brother Sam.

E carregando essa dúvida de ter ajudado a instalação da ditadura, ele tinha uma certeza: se o Jango não fosse ao Automóvel Clube, provavelmente ele não cairia.

O Jango foi no dia 30. O Mourão resolve se levantar na madrugada de 30 para 31. O Gordon e o adido militar Vernon Walters, quando eles chegaram à Embaixada por volta das 9:00 da manhã do dia 31, o Mourão dizia que tava rebelado.. Nenhum dos dois sabia de nada. Isso segundo o Gordon.

CENA 09: Castelo Branco

NADEDJA

Na sala de casa em Ipanema, o general Castelo Branco ouviu o discurso de Jango acompanhado dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Os três achavam que a reação ainda ia demorar alguns dias.

Castelo Branco era um cearense de 63 anos com 1,64m de altura. Tinha problemas na coluna que o faziam usar sempre um colete ortopédico. Ele estava havia menos de um ano na chefia do Estado Maior do Exército.

Era uma função de muito prestígio, mas que não tinha importância operacional. Ele comandava o sexto andar do prédio do Ministério da Guerra, no centro do Rio, aquele mesmo que Mourão acreditava que conseguiria tomar em apenas 24 horas. Fora isso, Castelo Branco mandava só na própria casa mesmo.

HELENA

Mesmo sem comando, ele era muito respeitado porque tinha sido chefe da Seção de Operações da Força Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra, na Itália, onde ele e o coronel Vernon Walters ficaram amigos, lembra?

Quando Jânio Quadros renunciou, Castelo Branco defendeu discretamente a posse de João Goulart, depois virou crítico das manobras do presidente. Numa das conversas com Elio Gaspari, Geisel descreveu Castelo assim.

AUDIO 29 – Sonora Geisel:

O Castelo vinha… Era… Vinha de fora. O pai dele era oficial civil no sul e se matriculou no colégio. Era o cearense, corcunda, cearense, muito bom orador, metido a literato, aluno mediano. Não era fraco, mas não era um aluno brilhante.

Quando começou essa fase conspiratória, o Castelo não tinha boas relações. Ele conhecia alguns generais e coronéis, que eram mal vistos no Exército e ligados ao problema do governo. O Ademar disse pra ele, olha aqui Castelo, você tem que se equipar, vem a revolução, etc., e você precisa organizar um pequeno Estado maior que possa assessorar você. Porque esses amigos que você tem, esses não prestam, não servem.

HELENA

O Ademar a que Geisel se referiu era o general Ademar de Queiroz, amigo do Castelo Branco e do próprio Geisel.

NADEDJA

Castelo Branco se surpreendeu com a movimentação do general Mourão em Juiz de Fora. O general Antônio Carlos Murici tinha combinado com Mourão que comandaria as tropas revoltosas.

Antes de sair de casa, em Santa Teresa, no Rio, rumo a Juiz de Fora, Murici ligou pro Castelo Branco.

[Som de telefone]

Ao saber da notícia, Castelo Branco tratou de agir. Deu telefonemas com dois objetivos, fazer a conspiração avançar e ao mesmo tempo tentar conter o ímpeto do Mourão.

Castelo Branco aparecia como o nome mais forte para assumir o comando do Ministério da Guerra e com ele as operações dos revoltosos. O general tinha a confiança dos governadores Carlos Lacerda, do antigo Estado da Guanabara, e Magalhães Pinto, de Minas Gerais. O nome do Castelo atendia a todos que queriam um general apenas esquentando a cadeira até a eleição do novo presidente civil. E essa eleição estava prevista pra pouco mais de um ano e meio depois, para outubro de 1965.

Da maneira como estava sendo conduzido, o movimento de derrubada de Jango parecia fadado a dar errado. Castelo Branco percebeu que teria que agir de uma forma mais enérgica e assumir a liderança.

Foi pro trabalho no Ministério da Guerra. E a cena lá ia ficar muito, muito complicada.

[Respiro]

CENA 10: “Revolução de expediente”

NADEDJA

A notícia do levante no Brasil se espalhava a conta-gotas. Havia algo em Minas, mas não se sabia exatamente o quê. A uma da tarde do dia 31 de março, com a insurreição já acontecendo, Mourão teve fome e foi pra casa almoçar. Depois, como costumava fazer, tirou a sesta. Achava que estava à frente de uma revolução, mas sete horas depois de ordenar a marcha em direção ao Rio de Janeiro, ainda estava em Juiz de Fora.

NADEDJA

No Rio, o governador Carlos Lacerda se entrincheirou no Palácio Guanabara, com armamento para resistir por uns bons seis minutos de tiros. Já que não tinha como realmente se defender com fuzis, Lacerda usou um microfone como a sua maior arma.

AUDIO 30 – Sonora Lacerda: Almirante Aragão, Almirante Aragão,

Assassino monstruoso, incestuoso, miserável ? Almirante Aragão, não se aproxime, porque eu te mato com o meu revólver.

NADEDJA

Esse almirante Aragão, alvo de tanta raiva do governador Carlos Lacerda, era o Almirante Cândido da Costa Aragão, que seria conhecido como Almirante do Povo e que foi contra o golpe.

Dois movimentos do tenente Fred Perdigão Pereira mostram como ocorreu a queda de João Goulart e a vitória dos conspiracionistas. Na manhã do dia 1º de abril, cinco tanques sob o comando do tenente Perdigão guardavam o portão do Palácio Laranjeiras, onde estava João Goulart.

Representavam o apoio do Exército ao presidente.

Já na tarde do mesmo 1º de abril, os mesmos tanques, comandados pelo mesmo tenente, deixaram Laranjeiras e foram guardar o Palácio Guanabara, onde estava o governador Carlos Lacerda. Simbolizavam, assim, a vitória da rebelião contra o governo de Jango.

[Respiro]

NADEDJA

Ao longo do dia 31 de março de 64, os diplomatas americanos informaram a Casa Branca sobre cada movimentação do general Mourão Filho. O general golpista Carlos Luiz Guedes se encontrou secretamente com o vice-cônsul americano Lawrence Laser para pedir com urgência apoio logístico à rebelião.

Às 11h30 da manhã já estavam reunidos em Washington o secretário de Estado, o secretário de Defesa, o chefe da Junta de Chefes de Estado-Maior e o diretor da CIA.

A agenda tinha seis itens. O quarto deles era um relatório sobre a capacidade de apoio aéreo e naval americano aos revoltosos brasileiros. A Casa Branca tinha acordado cedo.

[Respiro]

Uma hora e vinte minutos depois dessa reunião, o comandante em chefe da Esquadra do Atlântico determinou o deslocamento de um porta-aviões à frente de uma força-tarefa para a área oceânica nas vizinhanças de Santos, aqui no Brasil.

HELENA

O plano que o presidente Lyndon Johnson tinha aprovado no dia 20 de março de 64 estava sendo executado. A esquadra foi composta por um porta-aviões, seis contra-torpedeiros com 110 toneladas de munição, um porta-helicópteros e um posto de comando aerotransportado. O contingente ainda foi reforçado por quatro petroleiros que traziam 553 mil barris de combustível.

O nome desse plano era Operação Brother Sam.

NADEDJA

Exatamente às 5h38 da tarde, o subsecretário de Estado George Ball falou ao telefone com o presidente Lyndon Johnson. [Sonora do telefonema sobe do BG]. Essa é a gravação desse telefonema.

  • A dublagem foi feita pelos jornalistas Leandro Gouveia e Fernando Andrade. George Ball fala para o presidente americano.

AUDIO 31 – Sonora do Telefonema, com dublagem:

Eles discutem sobre o que pode ser feito para formar um governo civil que tenha alguma legitimidade. Os governadores anti-Goulart devem se reunir na quarta-feira, segundo o Lincoln Gordon apurou. O número de governadores que são contra o presidente é significativo, são nove ao todo. É um número bem impressionante.

NADEDJA

Em 1964, o Brasil tinha 20 estados mais o Distrito Federal. Ou seja, pelas contas do Departamento de Estado americano, quase metade dos governadores estava contra o presidente João Goulart. E o presidente Lyndon Johnson não estava brincando.

AUDIO 32 – Sonora do Telefonema, com dublagem

Acho que devemos tomar todas as medidas que pudermos e estar preparados para fazer tudo que for preciso, exatamente como faríamos no Panamá, desde que seja viável. Eu seria a favor de que a gente se arrisque um pouco, disse Johnson.

NADEDJA

O edifício do Ministério da Guerra, que ficava na avenida Presidente Vargas, era o quartel general do Exército. Ao longo da manhã e da tarde do dia 31 de março, o cenário ali parecia de filme de faroeste. O General Castelo Branco estava entrincheirado no sexto andar, protegido por soldados que desligaram os elevadores e bloquearam as passagens. Os revoltosos controlavam os corredores do quinto ao oitavo andar, enquanto o governo funcionava do térreo ao quarto e do nono ao décimo.

Uma situação desse tipo não poderia durar. A qualquer momento, grupos diferentes das Forças Armadas poderiam entrar em conflito. Às três e meia da tarde, o pátio interno do prédio foi ocupado por carros de choque da Polícia do Exército.

O comboio militar entrou com as sirenes ligadas, a tropa desembarcou e ocupou os andares de baixo.

HELENA

O coronel Luiz Helvecio da Silveira Leite, aliado do General Castelo Branco, perguntou aos superiores o que fazer se a Polícia do Exército subisse. A resposta foi: “Atirem!”.

O coronel contou que engatilhou a pistola e ficou olhando a aglomeração de soldados no pátio, enquanto os carros de combate apontavam as armas para o Ministério da Guerra. Rezou pedindo forças para não sentir medo. A expectativa dele era de ser atacado com bazucas quando anoitecesse.

Mas, de repente, os aliados de Castelo Branco receberam ordem de retirada. O general não estaria mais no prédio, mas a caminho da Praia Vermelha. E era pra lá que todos deveriam ir.

Um colega falou pro coronel Elvécio: “que vergonha essas revoluçõezinhas que não dão em nada”.

E outro disse: “revoluçãozinha de expediente”.

CENA 11: Esperando por Kruel

NADEDJA

O general Castelo Branco não foi pra Praia Vermelha, como dito a seus comandados.

Ele foi se instalar num apartamento em Copacabana, junto com os generais Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e Adhemar de Queiroz. Ao longo das horas seguintes, eles mudaram de apartamento mais duas vezes. Publicamente, a impressão era de que a árvore do regime ia cair pro lado do galho em que o comandante da guarnição de São Paulo se sentasse.

Todo mundo estava preocupado com o general Amaury Kruel. Então, vamos ver um pouco mais de perto os passos dele.

Kruel tinha um bom relacionamento com Jango. Já com o general Castelo Branco, havia uma rivalidade que nasceu de uma briga durante a campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial.

De São Paulo, Kruel ligou para Jango. Pediu que ele demitisse Abelardo Jurema, do Ministério da Justiça, e também Darcy Ribeiro, da chefia do Gabinete Civil. Eram os colaboradores do presidente mais identificados com radicalismo. Kruel pediu também que o Comando Geral dos Trabalhadores, a principal central sindical do país, fosse declarado ilegal.

Jango pensou que esse tipo de acordo levaria a uma capitulação humilhante, que ele se transformaria num presidente decorativo, e encerrou a conversa com rispidez.

AUDIO 33 – Sonora Thiago – Jango

General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Põe as tropas na rua e traia abertamente.

NADEDJA

Na Câmara dos Deputados, em Brasília, o deputado Almino Afonso, que tinha sido ministro do Trabalho de Jango até junho de 63, estava na tribuna quando um colega passou um bilhete. Estava escrito, “Kruel aderiu”.

No Rio de Janeiro, o bairro de Copacabana estava sem luz, então imagina a cena.

Estava tudo escuro.

O general Floriano de Lima Brainer, que era ministro do Superior Tribunal Militar, ouviu batidas na porta de casa.

[Toc toc toc]

Quando ele abriu a porta, viu um rosto iluminado por uma vela.

Era o coronel Vernon Walters, camarada dos tempos da FEB. Ele veio em busca de notícias.

Lima Brainerd avisou que Kruel acabara de lançar um manifesto contra Jango. Vernon Walters, que era um católico devoto, respondeu com um, “graças a Deus”.

Eram quase 11 da noite do dia 1º de abril. Kruel tinha escolhido em que galho sentar, e a sorte de Jango estava selada. A árvore penderia para a direita.

[Tic tac]

CENA 12: O manifesto

NADEDJA

Na noite do dia 31 de março de 1964, em resposta à movimentação de tropas em Minas Gerais, o aeroporto de Brasília foi fechado pouco depois das 9 horas.

AUDIO 34 – SONORA

“O aeroporto está fechado, as estradas que dão acesso a Belo Horizonte e Goiânia já estão tomadas por forças do Exército.”

NADEDJA

Os militares que apoiavam Jango tinham ocupado as saídas da cidade e controlavam as comunicações. Uma fita com o pronunciamento do presidente do Senado, Auro Moura Andrade, foi confiscada e não foi ao ar.

Na Câmara e no Senado, a oposição continuava atacando o governo. Com muito custo, os parlamentares mais experientes conseguiram impedir que a sessão acabasse em pancadaria. Os parlamentares falavam mais palavrões do que discursavam.

Você vai ouvir, por exemplo, o que disse o deputado federal Abel Rafael.

AUDIO 35 – Sonora Abel Rafael_Vai ser na marra!

Não esta mais na hora da retórica nem da filigrana. Agora está na hora de brigar. Se vossas excelências querem brigar Já começou. Chega de conversa, Chega de desafio. Então vai ser na marra. E daí? Agora é na marra.

NADEDJA

Mesmo com o golpe na rua, no fim da manhã do dia 1º de abril, só duas unidades de combate em todo o Rio de Janeiro estavam rebeladas, o Forte de Copacabana e a Fortaleza de São João, na Urca.

No Rio, o jornal Correio da Manhã estava exaltado.

Um editorial intitulado “Fora” se destacava no alto da primeira página e dizia

AUDIO 36 – Sonora Thiago – Editorial Correio da Manhã

Não resta outra saída. O senhor João Goulart, se não entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao senhor João Goulart. Saia!

NADEDJA

A oposição a Jango alternava períodos de desânimo com euforia enquanto esperavam notícias sobre o general Amaury Kruel. A frase mais espetacular com a análise do período foi a do general Cordeiro de Farias, que disse: [voz com eco]“O Exército dormiu Janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia primeiro”.

Na manhã do dia 1º de abril, o general Golbery redigiu um documento que tinha a função de, abre aspas, “preservar o máximo possível de unidade militar, esquecendo-se as lealdades e malquerenças da véspera”. Era o Manifesto dos Generais da Guanabara.

Golbery escreveu o documento junto com os generais Adhemar de Queiroz, Geisel e Castelo Branco. O manifesto fazia um apelo para que, coesos e unidos, os militares restaurassem a legalidade. Essa legalidade, no caso, era o golpe.

Concluía dizendo: “Camaradas do exército, unamonos em defesa do Brasil”

Horas depois, no mesmo dia, o Manifesto dos Generais foi lido pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Foi um ato público, com transmissão pelo rádio, defendendo a queda de Jango.

AUDIO 37 – Sonora Lacerda:

“Conscientes das responsabilidades que nos cabem como chefes, conclamamos a todos os camaradas do Exército Brasileiro…”

HELENA

O manifesto convoca, em primeiro lugar, os integrantes do Exército. Em seguida, diz que as outras forças se juntariam ao esforço.

AUDIO 38 – Sonora Lacerda:

As Forças Armadas Irmãs, Marinha e Aeronáutica, bem como as Forças Auxiliares e Estaduais, Reservas do Exército, não nos faltarão em seu apoio.

HELENA

Aqui, o texto do manifesto define com clareza quem seria o vilão da história.

AUDIO 39 – Sonora Lacerda: …Evitar a luta fratricida…

“…evitado a luta fratricida e, na verdade, vem sendo preparada, irresponsável e criminosamente pelo Presidente da República e seus aliados comunistas.”

HELENA

E conclui reforçando a ideia de unidade, afirmando que as forças golpistas lutam pela democracia.

AUDIO 40 – Sonora Lacerda:

“…Do regime democrático, camaradas do Exército, unamonos em defesa do Brasil. Esta é a hora decisiva. “

HELENA

O documento foi assinado por três generais.

AUDIO 41 – Sonora Lacerda:

Assinados, General de Exército Arthur da Costa e Silva, General de Exército Humberto de Alencar Castelo Branco, General de Exército Décio Palmeiro de Escobar.

HELENA

O governador Carlos Lacerda disse que convocou o Ato Público de 1º de Abril no Rio para defender a democracia. Terminou com manifestantes pedindo que Jango fosse derrubado e que Brizola, o governador gaúcho que tinha defendido a legalidade em 1961, fosse mandado para o xadrez.

AUDIO 42 – Sonora Lacerda – Manifestantes gritam

HELENA

Pensando no que viria depois da vitória dos golpistas, o general Adhemar de Queiroz filosofou: “Agora vem o pior, a fase das ambições.”

CENA 13: Ambições

NADEDJA

Ah, a fase das ambições. Com o golpe seguindo em marcha lenta, o general Costa e Silva imaginou que pudesse se lançar como chefe revolucionário.

Tomou o Ministério da Guerra com o propósito de agarrar o poder sem aprofundar rachaduras no meio militar. Não funcionou imediatamente, mas como vamos ver no próximo episódio, ele acabou chegando lá. As rádios e televisões anunciavam que tinha acontecido uma revolução.

Costa e Silva, então, despachou a todas as unidades militares um telegrama em que ele se autoindicava para o degrau mais alto na hierarquia do Exército.

Ou seja, ele assumiu o comando na marra. O general Amaury Kruel sabia que tinha tido atuação essencial para o resultado do golpe e que isso poderia colocá-lo em posição de liderança. Só que os dois tinham um obstáculo à frente:

O velho adversário Castelo Branco e todo o grupo de oficiais que passou a girar em torno dele.

CENA 14: Enquanto isso, Jango

NADEDJA

Nas altas horas da noite de 31 de março, o golpe tinha uma bandeira. Tirar Jango do poder para combinar o resto depois.

Mas onde estava Jango? Ele foi avisado do levante do general Mourão na manhã do dia 31 de março e ficou fechado no Palácio Laranjeiras. Estava confiante na capacidade de defesa do que chamava de “dispositivo militar”.

Sabia que a tropa que se levantou contra ele em Juiz de Fora não passava de um amontoado de recrutas. O ministro da Guerra de Jango, Jair Dantas Ribeiro, enviou uma declaração à imprensa.

AUDIO 43- Sonora Dantas

“Fiel aos princípios legalistas que imprimo a todas as minhas diretrizes, agirei com a máxima energia contra os sublevados, alertando antes.”

NADEDJA

Dantas Ribeiro estava no lado oposto, mas repetiu o discurso do Manifesto dos Generais.

AUDIO 44 – Sonora Dantas

“Estão tentando nos dividir, mas não vai dar certo. “

NADEDJA

Dantas Ribeiro estava errado, claro. Quando o general Mourão se rebelou, o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar de Jango, tinha achado que dominava a situação.

Seguiu com o presidente para Brasília e de lá para Porto Alegre. Aos poucos, os dois se deram conta da gravidade da crise. O dispositivo de defesa de Jango só existiu na cabeça do general Assis Brasil.

João Goulart estava mais que deposto. Mas o artigo 85 da Constituição só permitia que a presidência fosse declarada vaga se ele deixasse o país sem autorização do Congresso.

[Respiro]

NADEDJA

Já na madrugada do dia 2 de abril, o presidente do Senado, Auro Moura Andrade, liderou uma das mais dramáticas sessões do Congresso na história da República.

AUDIO 45 – Sonora Auro Moura Andrade_Responsabilidade

“Não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado. Há sob a nossa responsabilidade a população do Brasil, o povo, a ordem”.

HELENA

Auro Moura Andrade tinha sido um dos responsáveis por construir a solução parlamentarista, que limitou os poderes de Jango em 1961. Agora, menos de três anos depois, ele estava decretando o fim do mandato do presidente. O senador tinha se reunido com o chefe da representação americana na capital, horas antes daquela sessão no Congresso.

AUDIO 46 – Sonora Auro Moura Andrade_vaga a presidência

“Assim sendo, declaro vaga a presidência da república. E nos termos do artigo 79 da Constituição, declaro presidente da república o presidente da Câmara dos Deputados, Ranier Mazzilli”

HELENA

A posse de Ranieri Mazzilli era inconstitucional, porque Jango ainda estava no Brasil. Mas essa encenação criava a sensação de um desfecho legítimo.

NADEDJA

A Constituição determinava que, em caso de vacância da presidência na segunda metade do mandato do seu titular, a vaga deveria ser preenchida pelo Congresso.

Mazzilli tinha sido essencialmente um parlamentar astuto. Ele presidia a Câmara desde 1959 e ocupou a presidência algumas vezes desde então. Não tinha uma biografia que garantisse a sua permanência no cargo, então seria presidente por apenas 13 dias, de 2 a 15 de abril.

AUDIO 47 – Sonora Auro Moura Andrade_A sessão se encerra

“A sessão se encerra”

HELENA

A gente falou no início deste episódio que Tancredo Neves tinha sido primeiro-ministro durante a fase do parlamentarismo, de 61 a 63. Aí, depois do plebiscito que restaurou o presidencialismo, ele virou líder do governo João Goulart na Câmara. Era o símbolo da moderação.

Você não vai conseguir ouvir nessa cacofonia toda, mas o Tancredo estava ali, em frente ao senador Auro Moura Andrade, gritando “Canalhas! Canalhas!”

NADEDJA

No meio da madrugada, Moura Andrade foi para o Palácio do Planalto. Levava com ele o presidente do Supremo Tribunal Federal e o deputado Ranieri Mazzili. Os três formaram a menor comitiva de posse de um presidente da história republicana.

Atravessaram a Praça dos Três Poderes e encontraram o Palácio do Planalto às escuras. Enquanto Mazzili tomava posse no Planalto, o avião GABAC-2501 pousava em Porto Alegre com o Jango. Ele ainda estava no Brasil, mas a presidência já tinha sido declarada vaga.

Durante o resto da madrugada de 2º de abril, o presidente estudou resistir. Foi para a casa do comandante do 3º Exército, escoltado pela companhia de guarda, se reuniu com Brizola, colecionou notícias desastrosas e terminou a noite em uma crise de choro.

AUDIO 48 – Sonora Brizola_Paga pelo Povo

“A decisão final dessa reunião, coube ao presidente… “

NADEDJA

Esse é o Brizola explicando a decisão do Jango.

AUDIO 49 – Sonora Brizola_Paga pelo povo continua

“…Que decidiu que não houvesse resistência, porque considerava que seria um tributo de sangue demasiadamente grande que o povo brasileiro teria que pagar.”

NADEDJA/HELENA

A grande confusão mal tinha começado. Jango já era um presidente do passado e Mazzilli era um presidente sem futuro. O derramamento de sangue acabou vindo depois, como ainda vamos contar nos próximos episódios.

Na madrugada do dia 2 de abril, Jango estava deposto. Para não ser preso, voou para a cidade natal dele, São Borja, junto com o general Assis Brasil. Foram para um rancho perdido nas margens do rio Uruguai.

Dias depois, cozinhou um ensopadinho de charque com mandioca e voou para Montevideo. No desembarque, Assis Brasil disse ao presidente deposto:

AUDIO 50 – Sonora Thiago – Assis Brasil_Locução_Soldado

Sou soldado e tenho de me apresentar. Não quero ser considerado um desertor. Vou avisar ao ministro da guerra que vou voltar.

HELENA

Jango só chegou a Montevidéu no dia 4, mas isso já não tinha mais a menor importância. Na noite do dia 2, Lyndon Johnson já tinha enviado um telegrama ao presidente interino Mazzilli, desejando calorosos votos de felicidade.

CENA 15: A nova ordem, pós-golpe

NADEDJA

Na contabilidade das quarteladas latino-americanas, a deposição do presidente João Goulart derramou pouco sangue. Custou sete vidas, todas civis, nenhuma em combate.

Só quem se opôs ao nome de Castelo Branco foi o general Costa e Silva. Nenhum general janguista dormiu preso nas horas seguintes à derrota do presidente.

Eu contei que o general Mourão foi o estopim do golpe, mas ele logo ficou em segundo plano.

Ainda tentou ser presidente da Petrobras, mas nem isso conseguiu. Ao longo dos anos, criticou bastante tanto Castelo Branco quanto Costa e Silva. E, se no início defendeu a linha dura, depois se colocou contra o autoritarismo. Morreu em 1972.

NADEDJA

No dia 11 de abril, o general Humberto de Alencar Castelo Branco foi eleito presidente da República pelo Congresso Nacional.

AUDIO 51 – Sonora Posse – rádio_Aplausos Delirantes

Aplausos delirantes, quando anunciou-se o voto que alcançava os dois terços necessários do quórum presente…

NADEDJA

No dia 15 de abril, o general Castelo Branco tomou posse. A promessa era de ficar um ano no poder.

AUDIO 52 – Sonora Posse – rádio_Castelo em Juramento

O general Humberto de Alencar Castelo Branco é agora o novo presidente da República, recebendo 361 votos, no total de 438… Prometo manter, defender e cumprir a Constituição da República. Observar as suas leis.

NADEDJA

Castelo Branco tinha até um vice-civil, o habilidoso político mineiro José Maria Alckmim.

AUDIO 53 – Sonora Posse – rádio – Alckmin

Prometo exercer o cargo de vice-presidente da República com dedicação e lealdade. Cumprir as leis do Brasil e tudo fazer pelas suas instituições e pelo seu progresso.

NADEDJA

Vamos ouvir de novo o que prometia Castelo Branco:

AUDIO 54 – Sonora Posse – rádio_Castelo e sua promessa

Prometo manter, defender e cumprir a Constituição da República. Observar as suas leis.

NADEDJA

Castelo Branco assumiu a presidência dizendo que entregaria uma nação coesa ao sucessor no começo de 66. Fez questão de afirmar que o tal sucessor seria legitimamente eleito pelo povo em eleições livres.

HELENA

A promessa de democracia durou pouco. Formatado por juristas e generais, o ato institucional que legitimava o golpe tinha 11 artigos. Limitava os poderes do Congresso e do Judiciário e dava ao presidente 60 dias de poder para cassar mandatos e cancelar direitos políticos por 10 anos. Além disso, estabelecia o prazo de seis meses para demitir funcionários públicos, civis e militares.

A eleição de 1965 nunca aconteceu. Em 1967, Castelo Branco entregou uma nação dividida a um sucessor eleito por apenas 295 pessoas. Esse sucessor foi o general Arthur da Costa e Silva. Na madrugada de 2 de abril, com o golpe militar recém consumado, ele disse a Ernesto Geisel que não assumiria apenas o I Exército, mas todo o quartel-general, onde ficava o Ministério da Guerra, ou, em suas palavras, essa “porra toda”. Em 1967, Costa e Silva assumiu a presidência de República.

CENA 16: Fechamento

NADEDJA

No próximo episódio de A Ditadura Recontada, vamos entrar nos bastidores de um dos momentos mais tensos da história do período, o ato institucional número 5.

Você vai conhecer os conflitos que antecederam o decreto e o que aconteceu logo depois. O AI-5 foi chamado de golpe dentro do golpe.

Cassou direitos políticos, institucionalizou a tortura, proibiu Habeas Corpus para crimes políticos e fechou o Congresso Nacional.

[Falas que estão no tema original do programa]

AUDIO 55 –

“Eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente.”

“Se não tomarmos neste momento a medida que está sendo apresentada, amanhã vamos apanhar na cara. E é com verdadeira violência aos meus princípios, ideias e adotos. Uma medida como é.”

Créditos:

O podcast A Ditadura Recontada: as vozes do Golpe teve pesquisa de Helena Dias, que narra essa série comigo. Ela contou com a colaboração de Daniel Reis, Bárbara Falcão e dos Centros de Documentação e Pesquisa da TV Globo, e do Sistema Globo de Rádio.

Contamos com áudios não só dos nossos arquivos e de Elio Gaspari, mas também da Biblioteca JFK, da Biblioteca Lyndon Johnson, da Biblioteca Acadêmico Luiz Viana Filho, da Cinemateca Brasileira, do Arquivo Nacional, do Memorial da Democracia e da Rádio Mayrink Veiga.

A trilha original foi composta por Pedro Leal. O desenho de som e a mixagem são de Marianna Romano.

A produção é de Thiago Barbosa, que também foi o locutor de muitas falas sem registro em áudio, e de Bárbara Falcão.

As gravações foram feitas nos estúdios da CBN em São Paulo por Debora Gonçalves.

A edição e a montagem dos episódios desta série são de Bárbara Falcão e Laura Capelhuchnik.

O roteiro deste episódio foi escrito pela Ana Maria Straube, com colaboração de Paula Suztan.

Toda a série A Ditadura Recontada teve coordenação e desenvolvimento de Alexandre Maron, da Ampere Mídia, a supervisão de roteiro, pesquisa e edição de Plínio Fraga, a concepção e direção executiva de Pedro Dias Leite e décadas de apuração, profundo trabalho de reportagem e históricas entrevistas de Élio Gaspari.

Pela Globo, direção geral de produtos digitais e canais pagos de Manuel Belmar.

RN176; Assistam aos 6-vídeos,, entre eles  da Ditadura, do Golpe de 64, e da construção de Brasília Deixe os seus comentários de cada vídeos?

FONTE: CBN E GLOBOPLAY