Ana Flavia Cavalcanti: ‘Racismo é péssimo para todo mundo’

ROTANEWS176 E POR EQUIPE PORTAL 22/07/2020 11h36                                                                                   Por Luiza Leão

Em isolamento social no interior de Minas Gerais, a atriz co-dirigiu e atuou no filme “Bocaina”, ainda sem data de estreia

Imersa na realidade de Bocaina, em Minas Gerais, Ana Flavia Cavalcanti conversou por telefone com o Terra debaixo de uma árvore, enquanto “roubava” o wifi do vizinho. Vez ou outra, um cãozinho interrompia a conversa para dar o ar de sua graça. A quarentena da atriz no município rural só não foi tão tranquila por um motivo: o bucolismo deu espaço à criatividade e a roça foi transformada em set de filmagens.

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O filme que leva o nome do município mineiro tem direção da própria Ana Flavia, com Malu Gali e Fellipe Barbosa, e fala de duas irmãs que viviam tranquilamente isoladas até a chegada de um forasteiro à Bocaina. Entre as dificuldades de gravar em meio à pandemia do novo coronavírus, estava a necessidade de manter a equipe enxuta. Ao todo, 13 pessoas participaram da produção e execução da obra.

“Foi uma loucura porque a gente teve uma equipe super reduzida para gravar o filme, um dos poucos gravados na pandemia. Não tinha assistente para ninguém. A gente fez tudo, se dividiu em muitas funções. Até por causa disso, entendemos que a direção foi coletiva. A gente tinha que se dar conta de que era possível fazer. Eu, o Felipe, a Malu, estamos todos acostumados com a Globo, que tem muita equipe”, conta. Já gravado, o filme está na fase de pós-produção ainda precisa de um espaço para ser exibido para o público.

Confira a entrevista com a atriz, que, além de Bocaina, falou de seus trabalhos dentro e fora da TV, sua visão sobre o racismo e o papel da arte na quarentena.

Reprodução/Foto-RN176 Atriz Ana Flavia Cavalcanti gravou um longa durante a quarentena na cidade de Bocaina, em Minas Gerais Foto: Carlo Locatelli / Divulgação

Terra: Há alguma previsão de lançamento seja na televisão ou no streaming?

Ana Flavia: A gente quer lançar logo. A gente já começa por agora o processo de montagem. Não é exatamente sobre a pandemia e sobre o coronavírus, mas a gente fala muito sobre esse tipo de vida isolado, sobre a expectativa da vida lá de fora. A gente tem duas dimensões que trabalham simultaneamente. Se a gente sair do isolamento, esse filme precisa acontecer logo. Ele pode conversar diretamente com a gente que está vivendo.

Qual a sensação de conseguir produzir um filme mesmo com poucos recursos, quase sem equipe e em meio à pandemia?

O que fica de lição é que a gente pode fazer o que a gente sabe fazer de um jeito diferente. Muitos amigos que trabalham com audiovisual se viram loucos porque de repente tudo acabou. Não tinha mais nada e nem perspectiva. Isso deixou a gente bem desesperado, bem tenso. A gente que é da arte está muito abandonado no Brasil pelo governo. Mas esse filme dá uma esperança, dá um vislumbre de outras possibilidades. Por isso, em Bocaina, a gente levou o fazer artístico muito a sério. Tô muito feliz que a gente conseguiu executar. Dá uma força quando a gente realiza o trabalho desse jeito.

A consolidação do streaming abriu um leque de possibilidades para os artistas produzirem mais. Como você enxerga essas novas opções de fazer a arte chegar até o consumidor final?

Para o público eu não sei se isso é bom, mas para a gente abre muitas possibilidades e por causa da concorrência. Antes a gente tinha basicamente duas emissoras, depois cinema, aí depois a Netflix chega, o Globoplay também. Esse povo que ficou falando mal de artista agora está consumindo arte. A quarentena é isso: filme, live, novela, série, livro, é mais uma prova de que não dá para viver sem cultura. Não dá, não existe. Todo mundo quer sair da sua rotina.

Antes de as novelas pararem as gravações por causa do isolamento social você estava no ar em Amor de Mãe como Miriam. Há alguma previsão de retomada da trama?

Tem uma discussão interna bem forte. Eles tão lá trabalhando full time pensando em quando a gente vai poder voltar com uma segurança máxima. A gente não sabe porque a gente tem uma protagonista que é super do grupo de risco. A Globo foi uma das primeiras empresas que pararam e o nosso trabalho envolve muito contato. Desde a maquiagem, cabelo… Então a gente tem muito contato físico.

Você está com saudade de viver a delegada?

A globo parou em 12 de março. Eu gravei nesse dia umas cenas que eu amei. Gravei com o Álvaro, o personagem de Irandhir Santos. Mas logo recebemos o comunicado de que pararíamos por algumas semanas, mas já estamos há alguns meses. Tenho certeza de que todo mundo quer que a novela chegue em sua reta final. Eles estão com mil reuniões e testes.

Como tem sido reassistir a diretora Dóris em Malhação – Viva a Diferença?

Poxa, no meio de tanta notícia triste e esquisita, com todo mundo meio órfão de trabalho, veio essa Malhação, que na minha humilde opinião é a melhor de todos os tempos [risos]. O Cao [Hamburger] é precioso na escrita, na escolha das temáticas. Ele sai do amor romântico, do par, para ir para a diferença do colégio público para o particular, da personalidade de cada uma das cinco amigas. A gente falou de aborto, abuso, transfobia, a gente recebeu uma enxurrada de ligações no telefone da Globo por causa da história de abusos da novela. E a Doris é um sonho. No meio de uma novela de criança, que os protagonistas são adolescentes, a Doris foi crescendo. O discurso da Doris, na abertura do Cora Coralina, reformado com fundos arrecadados pelos alunos, deu um peso para a personagem. O Cao me ligou para dar parabéns quando assistiu pela primeira vez. As pessoas me reconheciam muito pela Doris. Um dia fui dar uma volta no parque de Madureira e parecia a Xuxa passeando.

O spin-offAs Five, já foi gravado e estreará em 12 de novembro. O Globoplay também confirmou uma segunda temporada para 2021. A Doris estará na trama?

Na primeira temporada eu não estou, mas o Cao me disse, por alto, que eu vou estar na segunda. Ele me disse que na primeira não coube a minha personagem reaparecer porque estava condensando a temporada na história das meninas após a escola, mas que na segunda a Doris poderia estar. Tem chances, né? São personagens que marcam muito a vida da gente.

Você se veste com o uniforme branco usados por babás para fazer provocações sobre racismo em lugares diversos por meio da intervenção “A Babá quer passear”. Durante a quarentena, a babá passeou em algum lugar?

Eu quero fazer uma intervenção. Eu gostaria que fosse ao vivo, mas eu não sei quanto tempo vai durar. Durante a quarentena, a babá que não passeou, graças a Deus, foi a Babá da performance. É impressionante como a classe média e os ricos abrem mão de algumas coisas, menos do trabalhador doméstico. É muito difícil. É uma loucura. Parece que vem no DNA do brasileiro. O que mais me provoca mesmo é o tanto que essas profissionais são mal remuneradas, mas mesmo assim correram os riscos. Óbvio que cabe um acordo entre as duas partes, mas todas as relações a gente encontra um lugar de pessoalidade, que dá para ter um acordo individual. Mas essa é a população que corre mais risco. Agora, eu estou querendo fazer uma performance na minha casa, em Santa Tereza, chamada faxina de segunda. É o dia mais crítico para as faxineiras. Óbvio que a pessoa é contratada para limpar, mas as pessoas abusam. Eu já ouvi muito: “Vamo lá em casa amanhã porque no dia seguinte a empregada vem”. As regras colocadas para a população da casa mudam quando alguém vem para limpar. Sempre tem alguém pronto para fazer uma faxina. E agora ainda mais. Eu quero dar uma provocadinha nas pessoas que contratam as empregadas domésticas.

Por onde a babá já passeou?

Fiz a performance em muitos lugares. Em Roterdã, em Paris… Me inspirou fazer a intervenção na Europa porque as pessoas falam que lá é diferente. É um pouco, mas não é muito. Até onde eu vi, a exploração de mão de obra para a limpeza é sempre a população que “vale menos”. Ou é estrangeiro ou é o pobre. E aqui no Brasil é esse abuso, é esse absurdo… Tanto que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica. Também tem o caso do Miguel, no Recife. Eu fico muito angustiada. Em alguns debates as pessoas me perguntaram se eu não tenho o desejo de pautar outros temas. Mas só que não dá. Eu fui para a Alemanha vestida de babá para provocar o Ministro Paulo Guedes, que disse que as babás estavam indo para a Disney. É um pensamento que é racista, mas é classista. Não importa nem se a pessoa tem dinheiro. O capitalismo deveria aceitar quem pode pagar ir.

O que você tem consumido de arte durante a quarentena?

Só consegui assistir a uma série: Succession, que eu adorei. Achei bem surpreendente o final e a transformação do personagem principal durante a série. Ele é um excelente ator. Comecei a ler um livro sobre Thetahealing, que eu estou muito interessada no assunto. E comecei e terminei em um segundo o livro Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, que discute a questão do colorismo. É a história de dois irmãos filhos de pais negros e aí um irmão é preto e o outro é pardo. O livro mostra como a estrutura de cada um deles é pautada por isso, por essa questão de um ter a pele clara e o outro ter a pele escura. É incrível o livro, sensacional. Eu também estou no final do livro da Michelle Obama, Minha História. É uma autobiografia muito interessante. Foi o que eu consegui consumir de arte porque eu estava muito imersa na escrita de Bocaina com o Felipe e a Malu. Então foi muito intenso escrever em tão pouco tempo o roteiro de um longa-metragem.

O que você acha de Djamila Ribeiro estar sendo a autora mais lida da quarentena? 

Djamila Ribeiro é um sol, né. É uma potência muito grande. Ela é uma filósofa, mas significa tanta coisa. Quando eu estava na Flip no ano retrasado, ela também foi a autora mais lida. E é louco que ela escreve filosofia. E é muito lindo as pessoas lerem filosofia. Acho importante que a pessoa leia, independentemente do que seja. Isso ajuda a ampliar o repertório de palavras, frases, ideias. Mas a Djamila é essa mulher negra poderosíssima, ela é essa pensadora, ativista, filósofa, é chique demais. Eu estou muito feliz.

Como você enxerga o fato de as pessoas estarem mais interessadas em conhecer mais sobre o racismo, principalmente após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos? 

É uma bola de neve que já está bem grandona aqui no Brasil. E ela vai derrubando tudo. O racismo é péssimo para todo mundo. É um câncer, uma doença que a gente tem que extirpar, a gente tem que acabar, combater. O racismo é assim, e é crime. Eu fico muito, não sei se exatamente feliz, porque não dá para ficar feliz nessa situação em que a gente vive no Brasil, mas eu fico muito comovida. Acho que toda força é bem-vinda. Quanto mais antirracistas tivermos, mais chances a gente tem de acabar, de eliminar com o racismo. Eu acho que o movimento que aconteceu nos Estados Unidos, com a morte de George Floyd, é aquela última gota em um copo que já está quase transbordando. Aqui no Brasil, a abolição foi mais um acordo e nos Estados Unidos foi uma guerra muito sangrenta. Eles conquistaram. Tem um comportamento subserviente na nossa população que eu não percebo na população deles. Mas acho que isso colabora muito com esse corpo social que se formou nos últimos dias dizendo: “basta, parem de nos matar”.

Você gostaria de compartilhar alguma novidade da sua carreira?

Eu recebi há algumas semanas o anúncio oficial do Festival de Cannes, que é o sonho de qualquer atriz, qualquer diretor, que o filme Casa de Antiguidades, do João Paulo Miranda Maria, foi selecionado. O protagonista é o Antônio Pitanga. A gente está muito feliz. É uma grande conquista para o cinema nacional. É um filme que critica muito um sistema de pensamento de governo. O filme se passa em uma cidadezinha de interior no Rio Grande do Sul, e aí um forasteiro chega para trabalhar lá. O filme é ambientado em uma cidade que se mobiliza muito para o trabalho em uma fábrica de laticínios, todo mundo trabalha com gado. Tem muita crítica social e política. O filme é muito maravilhoso. Então a gente está muito feliz de exibir em Cannes, apesar de o festival presencial não acontecer.