Outubro Rosa ignora pessoas trans por preconceito e machismo

ROTANEWS176 E POR NÓS 22/10/2022 05h00                                                                                                          Por Heloisa Noranho

Exclusão em campanhas é reflexo de políticas públicas inadequadas e despreparo de profissionais da saúde para lidar com população LGBTQIA+

 

Reprodução/Foto-RN176 “Enquanto sujeito transmasculine, não me sinto representado. Todas as campanhas são focadas em mulheres cis”, aponta o tatuador e modelo Gabriel de Carvalho Foto: Reprodução Instagram

Hoje, 22 de outubro, celebra-se o Dia Internacional de Ação pela Despatologização Trans, campanha que surgiu com o intuito de reafirmar à sociedade que identidade de gênero não é transtorno e nem doença e que merece ser respeitada de forma digna. Apesar de a OMS (Organização Mundial da Saúde) ter retirado a transexualidade do CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde) em 2018, ainda há muito a ser feito para romper as barreiras do preconceito – e a campanha anual Outubro Rosa é um exemplo claro. Pessoas trans também podem ter câncer de mama e, portanto, também deveriam compor o público-alvo das ações, mas não é o que acontece.

“Todo ano é a mesma coisa. Instituições de saúde públicas e privadas simplesmente ignoram a transgeneridade e a existência da pluralidade de corpos”, reclama o tatuador e modelo trans Gabriel de Carvalho, de 27 anos, que afirma não se sentir representado pelas campanhas do Outubro Rosa.

Em seu perfil no Instagram, Gabriel fez questão de postar uma foto mostrando o resultado da mastectomia de retirada total das mamas e cobrar por representatividade nas ações. “Enquanto sujeito transmasculine, não me sinto representado. Todas as campanhas são focadas em mulheres cis, com cores e tipografias com signos sociais lidos como ‘universo feminino’. Quero ver campanhas abordando os trans, os NB [não-binários] com seios com todo um visual bem neutro. Sem forçar a barra para a feminilidade e nem para a masculinidade”, declarou.

Sociedade heteronormativa

Para a ginecologista Ana Thais Vargas, médica voluntária na Casa 1, centro de acolhida na capital paulista para LGBTQIA+ expulsos de casa, a exclusão de pessoas trans das ações do Outubro Rosa é o reflexo da “heteromatização da sociedade”. “Em outras palavras, é preconceito aberto e declarado. Para a classe médica, é como se as pessoas trans não existissem. É uma invisibilidade total”, diz.

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Pesquisas apontam que o câncer de mama é o tipo que mais acomete mulheres em todo o mundo, tanto em países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos. Segundo o INCA (Instituto Nacional do Câncer), ligado ao Ministério da Saúde, o câncer de mama também ocupa a primeira posição em mortalidade por câncer entre as mulheres no Brasil. Esses dados, no entanto, mencionam apenas mulheres cisgêneros – homens trans, independentemente de terem feito ou não a mamoplastia masculinizadora (chamada de “top surgery”), e mulheres trans não fazem parte das estatísticas.

Reprodução/Foto-RN176 “Para a classe médica, é como se as pessoas trans não existissem”, diz a ginecologista Ana Thais Vargas Foto: Arquivo pessoal

Segundo Ana, a literatura médica envolvendo a comunidade trans é precária. Em relação ao câncer de mama, só existe um único estudo conhecido mundialmente. Desenvolvida pela VU University Medical Center, da Holanda, e publicada pela reivsta “BMJ”, a pesquisa apontou que mulheres trans têm 47 vezes mais chances de ter câncer de mama que homens cis. Vale lembrar que o câncer de mama em homens cis é raro e corresponde a cerca de 1% do total dos diagnósticos.

Problema estrutural

A falta de diversidade e conexão com a pluralidade de corpos e vivências nas campanhas do Outubro Rosa é apenas a ponta do iceberg de um sistema que ainda deixa a comunidade LGBTQIA+ à margem. Esse é o ponto de vista do mastologista Diego Wallace Nascimento, membro da SBM (Sociedade Brasileira de Mastologia) e médico voluntário no ICESP (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo). “O acesso aos serviços de saúde dessa população ainda é precário e as pessoas se sentem inibidas em procurar um médico justamente pela carência de profissionais humanizados”, diz Diego, que faz questão de destacar o seu lugar de falar como um homem gay.

Reprodução/Foto-RN176 Para o mastologista Diego Wallace Nascimento, falta atendimento humanizado na saúde para a população LGBTQIA+Foto: Arquivo pessoal

Diego ainda aponta a urgência de fomentar políticas públicas eficazes, uma vez que a política de saúde integral da população LGBTQIA+ desenvolvida para o SUS (Sistema Único de Saúde) na prática carece de melhorias – percepção compartilhada por Ana Thais Vargas. “Pessoas trans, principalmente, evitam procurar ajuda médica por medo de serem maltratadas”, afirma a médica.

Outro ponto necessário conforme os especialistas, em se tratando de saúde pública, é atenuar o vínculo da imagem da comunidade LGBT às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis). “Pessoas trans têm corpos como os outros, problemas de saúde como todo mundo e, portanto, merecem os mesmos cuidados. É preciso combater a LGBTFObia na saúde começando pelas universidades, que deveriam preparar melhor os profissionais do futuro para atender a sociedade cada vez mais diversa”, sentencia a ginecologista.